Quem quer ser um youtuber? Uma vida em troca de likes
Pesquisa de Mestrado analisa a maior plataforma de streaming de vídeos do mundo
Na primeira ocasião em que a publicitária Carolina Rocha de Campos publicou um vídeo no YouTube — a maior plataforma de streaming de vídeos do mundo, acessada por mais de 1,9 bilhão de usuários —, a sua intenção era disponibilizar material de apoio às suas aulas de Marketing, que ela lecionava numa instituição de ensino de Sorocaba. Nada além disso. Na plataforma, contudo, ela se deparou com toda sorte de conteúdos, inclusive com o que ela chamou de “pessoas comuns” registrando recortes de suas vidas cotidianas em vídeo. Foi daí que veio o seu interesse pelo estudo da plataforma, interesse esse que, em 2020, virou uma pesquisa de mestrado defendida no Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura da Uniso.
“Eram indivíduos que não possuíam aptidões artísticas, esportivas ou intelectuais que os diferenciassem sobremaneira do restante da população”, ela conta. “Contudo, mesmo assim, eles conquistavam milhões de fãs, tornando-se modelos de comportamento e determinando tendências de moda e hábitos de consumo.” No estudo, motivada pelo que observou na plataforma, Campos tentou compreender o contexto da comunicação mediada pela internet, especialmente nas fases 2.0 e 3.0 da web, em que as fronteiras entre espaço público e privado se tornaram tão diluídas e a própria vida acabou se tornando um produto, tão comercializável quanto qualquer outro.
Da roda em volta da fogueira à internet
A pesquisadora explica que a convivência em ambientes de comunicação e colaboração não é exclusividade dos nossos tempos. Muito pelo contrário: “Como seres sociais que somos, nós humanos sempre convivemos nesses ambientes, fazendo uso das tecnologias disponíveis em cada época para a viabilização desse contato. Porém, foi a partir do desenvolvimento dos meios de comunicação de massa, principalmente da internet, que as relações sociais deixaram de precisar necessariamente de um espaço físico ou geográfico para acontecer; hoje elas ocorrem independentemente do tempo e do espaço.” Essa é uma condição facilmente observável nas redes sociais, como o próprio YouTube, por exemplo, e ela vem causando grandes mudanças comportamentais em relação aos padrões de comunicação que se tinha até então, em outras épocas.
“A internet foi um meio que surgiu focado na transmissão de conteúdo, mas que acabou mudando a nossa forma de se relacionar e de perceber o mundo. Isso impactou de tal modo a sociedade que ela se constituiu numa nova ordem de relações sociais, que passaram a acontecer em um espaço ilimitado — o virtual —, lugar que, aparentemente, não diferencia o espaço público do privado”, destaca Campos. Assim, se antes era necessário que as pessoas estivessem presentes fisicamente para que um evento pudesse ser considerado público, os meios de comunicação de massa criaram novas formas de dar publicidade a um acontecimento, uma questão ou mesmo um indivíduo.
Criando personagens de si mesmo
Lucas Demétrio Carreteiro, 28, e Amanda Franco de Oliveira, 28, ambos egressos do curso de Relações Públicas da Uniso, experimentaram em primeira mão essas mudanças culturais possibilitadas por novos padrões de comunicação mediados pela internet. Eles mantiveram um canal bem-sucedido na plataforma YouTube durante seis anos, até 2020, quando optaram por encerrá-lo. Esse foi o segundo canal administrado pelo casal, mas o primeiro a se tornar um trabalho em tempo integral. Eles contam que, na época da sua criação, em 2014, eles já consumiam bastante conteúdo sobre jogos eletrônicos, de modo que passar a criar o próprio conteúdo foi um passo natural.
“Em relação às categorias dos conteúdos que nós criávamos, nós já fizemos dos quatro tipos. Já fizemos vlogs autobiográficos, mas, no geral, eu diria que os nossos vídeos sempre foram mais memoriais ou artísticos/cômicos. Nós nos utilizávamos de jogos eletrônicos como conteúdo-base, mas não para dar uma opinião sobre esse conteúdo. Era mais entretenimento, pura e simplesmente: nós jogávamos e brincávamos ao mesmo tempo”, define Carreteiro.
A marca de 1 milhão de inscritos foi atingida em março de 2017, época que ambos classificam como o auge do canal, especialmente em termos de quantidade de visualizações. Esse é um indicador importante, que tem impacto direto sobre a compensação financeira dos criadores de conteúdo — a chamada monetização. “Foi quando crescemos mais”, relembra Oliveira. “Houve momentos em que nós trabalhávamos de 10 a 12 horas por dia, para editar e postar de dois a três vídeos diários. O trabalho era pesado, mas eu estava satisfeita; a remuneração, por exemplo, era consideravelmente superior àquela que eu normalmente teria trabalhando numa empresa ou mesmo no setor público.”
Posteriormente, em 2019, eles ampliaram a atuação para outra plataforma, o Facebook, com um contrato fixo para conduzir pelo menos 80 horas de transmissões ao vivo (as chamadas lives) todos os meses. Em 2020, quando decretaram o fim do canal, eles tinham ultrapassado a marca de 1,7 milhão de inscritos no YouTube — quase três vezes a população da cidade de Sorocaba, a título de comparação. Mesmo assim, eles decidiram dar fim ao projeto, o que se deu, conforme conta Oliveira, por uma desconexão entre suas personalidades dentro e fora do canal.
“Tomamos a decisão de encerrar o canal principalmente porque nós mudamos muito em relação a quem nós éramos no começo”, ela diz. “Nós amadurecemos e não conseguíamos mais lidar com o canal da forma como ele era. Para manter a conexão com o nosso público, especialmente quando começaram as lives, nós tínhamos de ser algo muito diferente de quem nós realmente éramos. Quando estava num vídeo, eu não era a Amanda de verdade; eu criei uma máscara, principalmente porque eu sempre fui muito tímida, então, para conseguir estar naqueles vídeos, eu acabei criando uma ‘pessoinha’, uma persona mais infantilizada, que era inclusive mais family friendly (politicamente correta), adequada ao público mais infantil que nos seguia na época. Aquela pessoa que os nossos inscritos viam no vídeo era bem diferente da Amanda de verdade.”
A criação de um personagem para si mesmo e a conseguinte “venda” da imagem desse personagem como uma mercadoria são aspectos que Campos também aborda em seu estudo. Carreteiro completa afirmando que, dentro da lógica da monetização, os produtores de conteúdo são levados a produzir mais daquilo que faz mais sucesso e isso não exclui o direcionamento de suas próprias imagens pessoais, que também são produtos. “Para criar um canal, você normalmente escolhe aquela faceta sua que é mais bem humorada, mais engraçada, mais divertida, mais entertaining, e é ela que você apresenta ao público. Então, essa persona era o Lucas de verdade? Sim, mas só um pedaço dele. Certos traços da sua personalidade simplesmente não são interessantes para aparecer nesse personagem público que você cria.” Traços como a depressão, por exemplo.
Eles contam que abordar publicamente a depressão que Carreteiro enfrentava foi uma decisão consciente e necessária. “A abordagem desses assuntos mais pessoais aconteceu em momentos em que a minha depressão já estava atrapalhando o meu desenvolvimento no canal”, ele conta. “Várias vezes eu me senti forçado a fazer algo que eu não desejava. Houve dias em que eu estava muito mal, muito desanimado, então era muito difícil produzir aquele tipo de conteúdo, de vestir aquela máscara de alegria. E aí alguém pode se perguntar: como é que, no meio de literalmente milhões de pessoas, ainda assim você pode se sentir sozinho?”
Ele mesmo responde: “O que acontece é que essa é uma relação parassocial: as pessoas te conhecem, de certa forma, mas você não conhece nada sobre essas pessoas. Então elas conversam com você, elas te abordam e opinam sobre assuntos como se vocês fossem amigos, elas começam a pressupor coisas sobre você e a achar que o conhecem perfeitamente bem, e que têm o direito de cobrar coisas de você — inclusive assediando pessoas próximas a você, de seu círculo íntimo —, só que elas só conhecem um lado que você apresenta a elas. Por mais que haja essa atenção voltada a você, ela é baseada naquele personagem, naquela construção que as pessoas têm de você nas mentes delas. É uma relação artificial.”
Mantendo as relações virtuais saudáveis
A professora doutora Sylvia Labrunetti, coordenadora do curso de graduação em Psicologia da Uniso, explica que, ainda que o conceito de persona seja normalmente relacionado a “falsas personalidades”, essa é uma prática saudável. “Na realidade, todo ser humano precisa criar personas para relacionar-se socialmente e isso é saudável do ponto de vista emocional”, ela explica. “Deve-se considerar que, para uma proteção do seu eu verdadeiro, é preciso administrar os diferentes modos de se relacionar socialmente. Criar um personagem social e ‘descansar’ desse personagem na vida privada demonstra flexibilidade e, portanto, saúde psíquica.”
A situação pode se tornar menos saudável do ponto de vista emocional quando essa flexibilidade deixa de existir, ou seja, quando há uma cristalização de uma persona, como se o indivíduo fosse incapaz de deixar de desempenhar determinado papel, mesmo, por exemplo, quando as câmeras estão desligadas.
“Com as redes sociais e novos modos de se relacionar com o público, presenciamos alguns fenômenos como a criação de personagens espontâneos, porém acompanhadas da cristalização dessa espontaneidade. Espontaneidade cristalizada significa não-espontaneidade, podendo levar ao sofrimento psíquico nesse indivíduo se ele não souber administrar os sentimentos advindos dessa relação. A exposição da vida privada para o ambiente público pode parecer simples e inocente, mas requer consciência, pois a separação do público e do privado protege nosso ser e precisa ser bem administrada”, conclui Labrunetti.
Para saber mais: As três gerações da internet
A primeira geração da internet comercial (ou web 1.0) data de 1989. Naquela época e até meados de 2004, a rede ainda era read only (somente leitura). “Isso significa que o leitor podia extrair informações, porém não eram permitidas outras interações com os sites visitados. Seu funcionamento se baseava em grandes portais de informação, que estabeleciam uma relação de um emissor para muitos receptores”, explica Campos. A segunda geração (ou web 2.0) veio na sequência, quando interações entre o receptor e o conteúdo disponibilizado nos sites, bem como entre os próprios receptores — que também se tornavam emissores —, passaram a ser possíveis de forma mais premente. “A internet passou a ser vista como um ambiente dinâmico e participativo, deixando de ser um depósito de informações de uma única via para se tornar uma plataforma interativa, com ênfase na produção e na distribuição de conteúdo, com o controle descentralizado e a comunicação aberta, acontecendo de muitos para muitos”, Campos continua. A terceira geração da internet (web 3.0, também chamada de web semântica), que é a mais contemporânea, teve início por volta de 2016. Nesta fase que vivemos hoje, o próprio hábito de navegação dos usuários é um dado importante, o que o torna um emissor de informações em tempo real. “O sistema é capaz de reunir e gravar automaticamente os interesses dos usuários, sem a necessidade de que ele programe ou autorize tal procedimento. A internet semântica dispõe de ferramentas que armazenam todas as informações dos internautas, como produtos pesquisados, endereços visitados ou assuntos de seu interesse, por exemplo”, a pesquisadora conclui.
Para saber mais: Categorização dos vlogs
No artigo “Uma proposta de classificação para os vlogs”, publicado em 2012 na Revista de Comunicação e Epistemologia da Universidade Católica de Brasília, o pesquisador Fausto Amaro propôs quatro categorias para os vlogs mais comuns no Brasil. Campos comenta: “O vlog autobiográfico é aquele em que os criadores de conteúdo mais expõem suas intimidades. Já no vlog memorial, os autores se utilizam de fatos externos (como filmes ou jogos eletrônicos, por exemplo) para gerar seus vídeos, aproveitando-se para expor opiniões sobre os fatos abordados. No vlog informativo, o principal objetivo é transmitir informes sobre algum tema em específico (culinária, futebol, maquiagem, etc.), sendo essa a categoria que menos expõe a intimidade do autor. No vlog artístico/cômico, o autor é um candidato a artista, que expõe seu talento por meio de uma performance.”
Com base na dissertação “Uma vida em troca de likes”, do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura da Uniso, com orientação da professora doutora Tarcyanie Cajueiro Santos e aprovada em 9 de março de 2020. Acesse: https://uniso.br/mestrado-doutorado/comunicacao-e-cultura/dissertacoes/2020/carolina-rocha-de-campos.pdf
Texto: GUILHERME PROFETA