Preenchendo as lacunas da História
Uma nova vida para o acervo arqueológico dos povos originários de Sorocaba
Confira parte do acervo, com alguns itens nunca antes expostos ao grande público, na reportagem completa na Revista da Uniso: https://cutt.ly/x3LfF7M
O município de Sorocaba, no interior de São Paulo, foi fundado em 1654 por um bandeirante nascido no Brasil colônia, cujo nome era Baltasar Fernandes (1580—1667). Ao longo dos séculos XVI e XVII, homens como ele costumavam conduzir incursões frequentes rumo ao interior da América do Sul, em busca de riquezas. Mas, diferentemente do que muita gente ainda pode pensar, eles não estavam sozinhos quando exploravam os confins do continente; essa região, na verdade, já era habitada por grupos humanos muitos milênios antes da chegada dos portugueses, ou de qualquer outro europeu.
A história desses povos está registrada por meio de um rico acervo arqueológico, que, em 2022, passou por um processo de reorganização e curadoria. Composto por mais de 40 mil itens provenientes de pesquisas arqueológicas e achados fortuitos em Sorocaba e outros municípios adjacentes, o acervo faz parte do Museu Histórico Sorocabano (MHS), um dos poucos museus da região com autorização oficial para abrigar coleções arqueológicas.
“Nossa ideia era propor um projeto para que o acervo do museu recebesse tratamento técnico, e para que fosse criado um ambiente propício para pesquisadores que viessem a estudar esses artefatos no futuro”, explica Larissa Girardi Losada, estudante do curso de graduação em História da Uniso e uma das pesquisadoras envolvidas no projeto de atualização do inventário do MHS, que prossegue até janeiro de 2023. A verba, oriunda da Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo, foi utilizada para melhorar as condições de acondicionamento dos itens, incluindo a aquisição de novos equipamentos (como um desumidificador e um climatizador, por exemplo), bem como para o processo de higienização, categorização e inventário das peças. Mas, além dos aspectos técnicos, acrescenta Losada, houve por trás desse processo uma proposta para se pensar sobre a decolonização dos museus. “É sobre o apagamento dos povos originários, e sobre quais foram as narrativas escolhidas para serem as ‘oficiais’ quando foram escritas as histórias de nossas cidades”, ela defende.
Arqueologia decolonial
De acordo com o coordenador do projeto, o arqueólogo David Lugli Turtera Pereira, a arqueologia pode ser um instrumento para resgatar vozes que foram oprimidas e deixadas à margem da História com H maiúsculo. “A história oficial é a história dos vitoriosos — não necessariamente os vitoriosos do saber, mas aqueles que se tornaram vencedores por meio das armas, os vitoriosos da colonização. No nosso caso, esses vitoriosos acabaram passando um verniz sobre uma paisagem indígena que é milenar. Então existe esse hiato; muitas pessoas ainda acreditam que, antes da colonização, toda essa região era inabitada por grupos humanos, mas nós tínhamos diversas comunidades que viviam aqui, em plena associação e em simbiose com a natureza”, diz Pereira.
Para o pesquisador, museus de todo o mundo têm um papel fundamental como guardiões dessas informações e conhecimentos que quase foram perdidos. “Aqui nós temos uma equipe trabalhando na proteção desse material arqueológico, para que ele não se deteriore ainda mais. Muitas dessas peças passaram séculos embaixo da terra, algumas foram agredidas por maquinários de agricultura ou construção civil. Trazendo-as para o museu, nós estamos primeiramente resguardando todo esse material, para depois estudá-lo e entendê-lo, compartilhando o conhecimento com a comunidade e motivando novos diálogos e narrativas sobre o passado, diferentes da história oficial.”
Sobre o acervo do MHS
O acervo do museu, que vem sendo ampliado desde a sua inauguração em 1954, é composto por itens como vasilhas cerâmicas, tanto íntegras quanto fragmentadas; líticos (que são objetos de pedra polida ou lascada), como lâminas de machado e pontas de projéteis; urnas funerárias, também íntegras ou fragmentadas; e remanescentes humanos.
“Trata-se de uma coleção extensa”, explica Pereira, “composta por materiais bastante preservados. Esses materiais nos possibilitam contar a história de Sorocaba e região desde aproximadamente 10 mil atrás, até chegarmos a tempos mais contemporâneos, em que viveram os povos indígenas que de fato se encontraram com os primeiros colonizadores do estado de São Paulo (os bandeirantes e os padres jesuítas).”
Os materiais estão subdivididos em duas categorias: aqueles oriundos dos grupos de caçadores coletores, que foram as primeiras comunidades humanas a habitar o Brasil e a América como um todo, incluindo a região de Sorocaba (desde 10 mil anos atrás), e aqueles oriundos dos agricultores ceramistas, que são comunidades mais recentes (a partir de 1.500 anos atrás). As datações, contudo, não são exatas, uma vez que não existem para essas peças, ainda, estudos conclusivos; os períodos aproximados foram estimados, então, a partir da comparação com achados análogos encontrados em outros sítios arqueológicos próximos a Sorocaba.
Exemplos de itens referentes a ambos os grupos — de caçadores coletores e agricultores ceramistas — estão presentes nesta reportagem, com destaque para as pontas de projétil de pedra lascada encontradas em Sorocaba, a vasilha cerâmica reconstituída encontrada em Iperó e as duas urnas funerárias, ou yapepó, que ajudam os pesquisadores a compreender a cultura material do período pré-colonial em Sorocaba.
“É um acervo que está sendo redescoberto”, conclui Losada, “e a nossa ideia é dar subsídio, a partir do inventário, para que ele de fato cumpra a sua função social.” Nesse sentido, além da preparação das peças para futuras pesquisas acadêmicas, as atividades de divulgação científica previstas no projeto incluíram oficinas culturais, tanto para o grande público quanto específicas para professores, contextos em que, idealmente, essas narrativas alternativas sobre a história de Sorocaba (e da América Latina como um todo) podem ser reinseridas nos processos formais e informais de educação.
Para saber mais: os povos originários de Sorocaba
Para reconstruir as narrativas de um passado distante, nem sempre incluídas nos livros de História, os arqueólogos dependem dos vestígios que grupos pré-coloniais deixaram para trás, como pedras lascadas, cerâmicas e remanescentes humanos. No caso de Sorocaba e região, esses vestígios vêm sendo encontrados na bacia hidrográfica dos rios Tietê e Sorocaba, que era propícia para a ocupação humana há milhares de anos, devido à ampla quantidade de afluentes. O primeiro grupo humano registrado por aqui foi o povo umbu, composto por caçadores coletores que parecem ter habitado as regiões de cerrado, menos arborizadas. Eles foram os responsáveis pela confecção das ferramentas de pedra (como as pontas de flecha) reproduzidas nesta reportagem. O segundo grupo foi o tupiguarani, um amplo grupo de povos falantes da língua tupi-guarani, os quais ocuparam não só o Brasil, mas também o Uruguai, a Argentina, o Paraguai, a Bolívia e o Peru. Eles eram agricultores ceramistas cuja presença na região é reforçada pelos achados de suas características urnas funerárias, além de outros artefatos confeccionados em cerâmica.
Para saber mais: o pensamento decolonial
O que se chama de pensamento decolonial deriva da descolonização, um processo que pode ser descrito como a reversão do colonialismo, ou, em outras palavras, um conjunto de tentativas voltadas a reverter antigas estruturas de dominação entre as nações. O processo teve início com movimentos nacionais pela emancipação de países que até então eram colônias dos grandes impérios do passado, mas o pensamento decolonial foi além disso; hoje ele engloba, também, questionamentos sobre a universalização das narrativas e da moral ocidental — especialmente porque, na contemporaneidade, a colonização não se dá mais pela força bruta exclusivamente, mas por meios mais sutis, de forma simbólica e por influências ideológicas. É nesse sentido, como contraponto à história oficial (que, tanto no Brasil quanto em todo o Ocidente, foi escrita pelos colonizadores europeus), que se faz importante tornar mais acessíveis — nas escolas, nos museus, nas mídias — as narrativas dos povos originários.
Texto: Guilherme Profeta