Precisamos falar sobre violência escolar
Assunto será abordado no II Encontro de Pesquisadores em Educação Escolar da Uniso, que acontecerá em outubro
Vinte de abril de 1999, Littleton, Colorado, Estados Unidos. Dois estudantes do Ensino Médio, de 18 e 17 anos, adentram a Columbine High School, escola em que estudavam, vestindo casacos pretos e munidos de armas de fogo e bombas caseiras. Naquele dia fatídico — e provavelmente motivados pelo fato de terem sofrido bullying na condição de estudantes do colégio —, eles matariam dez estudantes e um professor, antes de finalmente cometer suicídio. O caso ficou famoso em todo o mundo, recebendo ampla cobertura jornalística e inspirando outras ocorrências semelhantes: os ataques na Escola Secundária de Red Lake, em 2005 (10 vítimas fatais); na Virginia Tech, em 2007 (33 vítimas fatais); na Universidade de Binghamton, em 2009 (14 vítimas fatais); na Escola Secundária de Sandy Hook, em 2012 (28 vítimas fatais); todos nos EUA. No Brasil, há evidências de que o ataque na Escola Estadual Raul Brasil, em Suzano, São Paulo, ocorrido em março de 2019, foi igualmente inspirado pelos acontecimentos de Columbine. Dez vítimas fatais, incluindo os dois assassinos, foram contabilizadas nessa ocorrência. Já em março de 2023, um estudante da Escola Estadual Thomazia Montoro, em São Paulo, também referenciou nas redes sociais o caso de Suzano, antes de matar uma professora idosa a facadas.
Dentre todas as configurações que a violência escolar pode assumir, os tiroteios em massa ou os ataques perpetrados por meio de outras armas (facas, bombas etc.) são provavelmente as mais lembradas — justamente por seu caráter de espetáculo midiático —, mas vale lembrar que existem inúmeras outras formas de violência, não raro mais veladas, que podem se manifestar nas escolas, em vários sentidos (entre os próprios estudantes, dos estudantes aos docentes, dos docentes aos estudantes, da gestão escolar aos docentes), de modo que se faz necessário, para acadêmicos da Educação e de áreas afins (a Psicologia, a Comunicação etc.), tomar a violência por objeto de suas pesquisas, de modo a compreendê-la como um fenômeno sociocultural e, assim, contribuir para que sejam coibidas suas manifestações extremas.
Agressão ou violência?
Segundo a professora doutora Sylvia Fernandes Labrunetti, coordenadora do curso de graduação em Psicologia da Universidade de Sorocaba (Uniso) e cuja pesquisa de doutorado teve como tema a agressividade no ambiente escolar, a agressão pode ser considerada um comportamento inato ao ser humano, que está baseado em nosso instinto de sobrevivência e que se faz necessário em momentos em que essa sobrevivência é ameaçada. “Violência, por sua vez”, ela explica, “é um fenômeno que tem base no poder sobre o outro, na invasão e no desrespeito a regras pré-estabelecidas socialmente para o convívio entre as pessoas. Estamos falando, por exemplo, de atos como furto e roubo, depredação do ambiente, mentiras etc. A violência é aprendida e, portanto, pode ser considerada ‘cultura’”.
Ela lembra que, nessa perspectiva, o próprio ato de educar pode ser considerado violento. “Isso se dá quando pensamos na educação como uma atividade de poder sobre o outro, de sujeitar o outro a determinados padrões. Dizer que a educação é ‘violenta’ significa pensar que ela possui, em geral, essa característica de invasão ao outro. Não significa, absolutamente, que ela não é necessária; pelo contrário: é fundamental que o ser humano passe pelos processos educativos para conseguir estabelecer regras de convivência e, assim, conseguir se socializar. Porém, esse processo deveria se dar, idealmente, de modo democrático, e não de modo impositivo.”
Tipos de violência
No Brasil, uma visão geral de como a violência se manifesta nas escolas pode ser obtida por meio do Registro de Ocorrência Escolar (ROE), um banco de dados mantido pela Secretaria de Educação do Estado de São Paulo (SEE-SP), em que os diretores de escolas estaduais devem registrar quaisquer crimes ou atos violentos que aconteçam nesses ambientes escolares.
No sistema, as ocorrências são classificadas em sete tipos, que se desdobram em diferentes especificidades: danos e outros crimes contra o patrimônio (vandalismo e depredação, invasão, roubo, furto), violência interpessoal (agressão física, agressão verbal, ameaça, discriminação, bullying, ação violenta de grupos e/ou gangues), consumo e/ou venda de álcool e outras drogas (uso de drogas lícitas, uso de drogas ilícitas, venda de álcool ou tabaco para menores, tráfico e/ou venda de drogas ilícitas, apreensão de álcool e/ou outras drogas), posse de armas e/ou outros objetos perigosos, violência sexual (assédios, abusos, estupros), questões disciplinares (episódios recorrentes de indisciplina, utilização indevida de aparelhos eletrônicos, saída injustificada de atividades pedagógicas), outros problemas de vulnerabilidade (ausência não autorizada pelos pais ou responsáveis, evasão, identificação de casos de maus tratos e/ou abandono, desaparecimento de estudantes, violência autoinfligida, acidentes, óbitos).
A título de exemplo, num artigo publicado pelas pesquisadoras Priscilla Albuquerque Tavares e Francine Carvalho Pietrobom (externas à Uniso), sobre os fatores associados à violência escolar no estado de São Paulo, entre os meses de janeiro de 2007 e maio de 2009, 46,8% das escolas estaduais de São Paulo registraram ao menos um caso de violência, sendo a depredação da estrutura física da escola a ocorrência mais frequente no que diz respeito a danos contra o patrimônio e as agressões entre estudantes as mais frequentes no que diz respeito a atos contra seres humanos. Atos extremos como os tiroteios em escolas estadunidenses ou o homicídio da professora no colégio paulistano, em março de 2023, ainda são ocorrências raras, mas constituem riscos em potencial, que não devem ser negligenciados.
O papel do professor
Para Labrunetti, para o avanço de uma sociedade, é fundamental que os educadores reflitam sobre sua função social, inclusive em relação à mediação da violência. “De certa forma, o conhecimento e a autocrítica constante instrumentalizam os educadores para que eles repensem seus atos e suas mediações, como parte do cotidiano escolar. Obviamente, professores em constante aprimoramento, que estejam recebendo cuidados com relação à sua própria saúde (sobretudo a mental), possuirão mais recursos para mediar conflitos e encaminhar situações de acordo com cada contexto.”
Por outro lado, ela argumenta, é injusto colocar sobre o professor o peso de toda a responsabilidade por essa mediação. “Para seguirmos pela mesma linha de raciocínio, pensando na violência como submissão de poder, devemos nos lembrar de que o professor está no centro dessa rede sociométrica, uma vez que ele também sofre violências sociais, institucionais e governamentais, e está à frente dos estudantes e da prática educacional em si (onde está sujeito a ser vítima ou a perpetrar violências). Assim, estamos diante da necessidade de políticas públicas que favoreçam que a escola tenha professores preparados, em número e qualidade. Muitas vezes, o educador se vê sem saída diante de tantos desafios, justamente por estar submetido a muitos tipos de violência, e eu destaco aqui a violência política e ideológica, que é o início de todo esse processo, além do risco da violência física. Um país que violenta seus educadores não tem como esperar uma sociedade não violenta. Vejo o papel da academia como fundamental na disseminação dessas discussões.”
O papel da academia
O professor doutor Rodrigo Barchi, docente do Programa de Pós-Graduação em Educação da Uniso e cuja dissertação de mestrado tratou de danos ao patrimônio escolar (mais especificamente, da pichação sendo compreendida como um ato político), destaca que a universidade — apesar de muitas vezes ser compreendida como um estrato diferenciado — também é um espaço escolar.
“Precisamos nos lembrar de que, na universidade, também reverberam todos os discursos e sentidos produzidos pela (e sobre) a violência, mesmo que não seja esse o âmbito em que ocorre de fato essa violência mais explícita”, defende Barchi. “Expõem-se, no ambiente universitário, de modo relativamente tácito, as marcas que a violência crava na subjetividade de cada estudante, funcionário e professor. E é por ser justamente um espaço em que não ocorre a violência mais crua e visceral — como nas próprias escolas do Ensino Básico, a exemplo daquela em que, no dia 27 de março de 2023, a professora Elizabeth Tenreiro, 71 anos, foi barbaramente esfaqueada e morta por um adolescente de 13 anos — que é necessário se aproveitar dessa relativa ‘paz’ para ampliar o pensamento ao redor da violência: suas causas, suas consequências e seus efeitos.”
Para o pesquisador, faz-se necessário, ainda, diagnosticar, investigar e compreender as outras formas de violência, mais veladas, que existem nas escolas, incluindo as universidades: violências de gênero, raça, contra minorias e portadores de necessidades especiais, ecológicas, culturais e econômicas. “E essas são análises muito mais difíceis”, ele destaca, “devido à capilaridade e à fugacidade dessas outras violências na amplitude do cotidiano universitário. Perante o que vemos nas escolas brasileiras, e já em algumas instituições universitárias, esse debate é mais do que urgente.”
Especialmente porque, apesar de não ser a primeira vez em que esse tipo de ocorrência extrema — um ataque deliberado com vítimas fatais — acontece no Brasil, não existe, no país, uma tradição de se trabalhar a fundo essa problemática. É o que pensa o professor doutor Rafael Ângelo Bunhi Pinto, coordenador do Programa de Pós-Graduação em Educação da Uniso. “Quando ocorrem ataques de ampla repercussão, os casos são naturalmente trazidos à evidência, mas não há a constituição de políticas de longo prazo para o combate a essas questões”, ele conclui. “No nosso caso, como universidade, nossa responsabilidade é discutir o problema em dois níveis: em relação à primeira de nossas linhas de pesquisa, ‘Políticas, Gestão e História da Educação’, a temática da violência escolar se insere no âmbito da concepção e da elaboração de políticas públicas relacionadas aos papéis do Estado e da escola no mundo contemporâneo, envolvendo uma formação cidadã que contribua para um estudante mais crítico e reflexivo, que possa combater qualquer tipo de violência. Já na linha ‘Cotidiano Escolar, Práticas Educativas e Formação de Professores’, também há uma contribuição quanto ao estudo de questões relacionadas ao próprio dia a dia da escola e das atividades educativas realizadas pelos docentes para a formação desses estudantes.”
Encontro de Educação Escolar
Na Uniso, essa discussão constituirá a temática da segunda edição do Encontro de Pesquisadores em Educação Escolar (EPES-Uniso), a ser realizada em outubro de 2023. As inscrições, gratuitas, estão abertas para pesquisadores da Educação e de áreas afins até o dia 30 de setembro. Inscrições e informações.
Fatores associados à violência escolar: evidências para o Estado de São Paulo.
Pichações nas escolas sob o olhar da educação ambiental libertária (jun./2018).
Texto: Guilherme Profeta