Necropolítica em The Last of Us
Jogo digital explorou consequências do estado de pandemia
A célebre frase “a arte imita a natureza”, atribuída a Aristóteles (384 a.C.—322 a.C.) e por vezes reinterpretada como “a arte imita a vida”, vem sendo usada ao longo das eras em vários contextos. Não raro ela é repetida, por leigos e acadêmicos de diversos campos do conhecimento, como recurso argumentativo para discutir a relação que existe (ou não) entre produtos culturais e a realidade que nos cerca. Isso certamente vale para as mídias mais clássicas (desde os primórdios da poesia e do teatro), mas também para toda sorte de mídias contemporâneas, como, por exemplo, os jogos de videogame. Afinal, será que — a exemplo da literatura especulativa (que propõe mundos drasticamente diferentes deste em que vivemos no aqui e no agora) — os jogos digitais também mantêm relações observáveis, por vezes críticas, com o contexto social do mundo histórico?
A professora doutora Thífani Postali, coordenadora do curso de Jogos Digitais da Universidade de Sorocaba (Uniso), garante que sim: “Os jogos digitais são a mídia do século XXI, não diferentes de mídias tradicionais como o cinema, a literatura, o teatro, as novelas, os seriados... Todas essas mídias acabam revelando situações do mundo histórico. Como defende Umberto Eco, toda ficção se apóia parasiticamente no mundo histórico, ou seja, por mais distante que pareça a narrativa do jogo, ainda assim ela vai levantar contextos sociais comuns ao mundo que chamamos de real: as questões políticas, as relações sociais, as hierarquias, a diversidade, as guerras... Como mídia, os jogos são objetos importantíssimos para áreas do conhecimento como a Comunicação Social, a Sociologia e a Antropologia, entre tantas outras, e por isso já vinham sendo abordados por autores clássicos como Marshall McLuhan e Roger Caillois, assim como por autores mais contemporâneos como Mary Flanagan, que entende os jogos como fotografia da sociedade. Nesse contexto, os jogos são objetos importantíssimos de se estudar.”
Em novembro de 2020, ainda durante a pandemia de Covid-19 e acompanhada pelo professor doutor Tadeu Rodrigues Iuama, do mesmo colegiado, a pesquisadora tratou dessa questão no VII Fórum Acadêmico de Estudos Lúdicos, organizado pela Rede Brasileira de Estudos Lúdicos. Na ocasião, e num artigo que seria publicado posteriormente, os autores procuraram interpretar as relações entre uma pandemia ficcional, narrada na franquia de jogos The Last of Us, e a pandemia causada pelo vírus SARS-CoV-2, que na época assolava o mundo real, deixando uma série de sequelas sociais, econômicas e culturais cujos efeitos ainda são sentidos até os dias de hoje.
Coincidência entre realidade e ficção
Postali e Iuama reconhecem que a ideia de mundos pós-apocalípticos é tema recorrente em inúmeras narrativas midiáticas, entre as quais estão incluídos os jogos digitais, de modo que, à primeira vista, The Last of Us poderia ser considerado somente mais uma historieta de zumbis. “Contudo, se colocada em contexto, tal narrativa parece responder à apreensão coerente de um contexto de pandemia em nosso mundo histórico”, destacam os autores, no artigo. Coincidentemente — ou não —, no mesmo período em que o primeiro jogo estava em pré-produção, em 2009, o mundo também enfrentava a pandemia de gripe A, causada pelo vírus A-H1N1 (que durou entre junho de 2009 e agosto de 2010, sem consequências socioeconômicas tão intensas); em 2013, quando o primeiro jogo foi lançado, o mundo acompanhava com apreensão um surto de síndrome respiratória no Oriente Médio, causada pelo vírus MERS-CoV, que felizmente não evoluiu para uma epidemia; já na época do lançamento do segundo jogo, o mundo enfrentava a grande pandemia de Covid-19 já há mais de seis meses.
A arte — neste caso, o jogo — pode ser compreendida, assim, como uma resposta à vida, motivada pelos acontecimentos que moldam o espírito de uma determinada época (bem como pelos sentimentos que emergem a partir dos fatos históricos), mas uma resposta que, diferentemente da historiografia, permite-se especular (ou extrapolar) as consequências desses acontecimentos. Como dizem os autores, é como se nos perguntássemos “E se...?”.
“Nós temos dois cenários em The Last of Us”, completa Postali.
Representação midiática da necropolítica
“Talvez”, defendem os autores, “os jogos de The Last of Us nos apontem para as consequências possíveis das escolhas que fazemos em nosso mundo histórico, um mundo a ser habitado por subgrupos agonísticos.”
Eles explicam que o termo faz referência a um tipo de organização social que pode ser comumente observada em primatas quando o ambiente, por alguma razão, se torna hostil: “Nessas sociedades agonísticas, ameaças são cotidianas, a ponto de os agrupamentos acontecerem em torno de um primata extremamente agressivo e poderoso, capaz de protegê-los contra as ameaças. Nesses grupos, a atenção dos indivíduos é sempre dirigida ao centro, ocupado pelo alfa. Esse indivíduo, com posição ambígua, é ao mesmo tempo a fonte de segurança contra ameaças externas e a principal ameaça interna, já que é justamente sua agressividade que lhe garante a posição de destaque.”
É esse tipo de sociedade instável que é representada nos jogos de The Last of Us: uma sociedade em que, como destacam os pesquisadores, há um sentimento de direito à opressão, em que aqueles à frente do poder estabelecido entendem que estão autorizados a controlar a vida (e a morte) dos indivíduos sob sua tutela. Motivados pela promessa de ordem num mundo caótico, esses indivíduos aceitam livremente essa dominação.
Tal descrição, por sua vez, flerta com o conceito de necropolítica, cunhado pelo filósofo camaronês Achille Mbembe para descrever aquelas formas de organização social humana em que o Estado tem o poder de decidir quem está autorizado a viver e quem deve ser deixado para morrer. O segundo grupo, constantemente desumanizado por determinados discursos (como o racismo), é posicionado em “zonas de morte” — que podem ser imaginárias, mas eventualmente também se manifestar fisicamente. Isso significa dizer que, numa condição de necropolítica, a morte de determinados grupos é considerada mais aceitável do que a de outros, fato que pode ser observado tanto no mundo do jogo quanto em nosso mundo real, segundo os autores.
“A pandemia de Covid-19 deixou muito evidente a discussão proposta por Mbembe sobre necropolítica, especialmente a partir do momento em que nós tivemos uma hierarquização das pessoas”, diz Iuama.
Assim, The Last of Us é obviamente uma obra de ficção, mas os pesquisadores advogam que, à luz de teorias que explicam fenômenos do mundo real, como a necropolítica de Mbembe, o jogo, enquanto mídia contemporânea, permite refletir criticamente sobre como as pandemias (seja a de Covid-19 ou outras que se anunciam) podem levar a sociedade a um estado de terror, fecundo para a consolidação da necropolítica e, consequentemente, a uma reorganização social em estruturas agonísticas não desejáveis.
Para saber mais: The Last of Us
The Last of Us é uma série de jogos digitais desenvolvidos pela Naughty Dog, empresa sediada na Califórnia, nos Estados Unidos, e distribuído pela Sony Computer Entertainment. O primeiro jogo foi lançado em 2013 e o segundo, em 2020. Ambos foram muito bem recebidos pelo público e pela crítica especializada. O enredo trata de uma pandemia ficcional, causada por um fungo capaz de transformar os seus hospedeiros humanos em canibais descontrolados, semelhantes a zumbis. Na narrativa, a pandemia causa um caos social sem precedentes, motivando medidas extremas de controle que incluem ofensivas militares contra os infectados e a imposição de zonas de quarentena. Tais medidas se mostram insuficientes, levando a ações cada vez mais violentas por parte desse poder central hipermilitarizado e, consequentemente, à emergência de outros grupos, antagônicos ao poder estabelecido. É nesse mundo pós-apocalíptico em que a ação dos dois jogos acontece. Posteriormente, em 2023, uma série televisiva de nove episódios foi adaptada a partir do jogo e lançada pelo serviço de streaming HBO max.
Com base no artigo “O ‘novo normal’ em The Last of Us: uma leitura sobre o mundo pandêmico”, publicado na Revista de Estudos Lúdicos, em 2021, conforme apresentado no VII Fórum Acadêmico de Estudos Lúdicos, em novembro de 2020, de autoria dos seguintes pesquisadores da Uniso: Thífani Postali e Tadeu Rodrigues Iuama.
Link para ler o artigo original, em português (p. 219):
https://www.rebel.org.br/wp-content/uploads/2021/09/REVEL-3-v2.pdf
Texto: Guilherme Profeta