Animais domésticos podem representar grave ameaça ambiental

As soluções perpassam desde a educação ambiental e a conscientização das pessoas

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Apesar da aparência simpática e inofensiva, animais domésticos abandonados ou livres são responsáveis pela morte de bilhões de animais silvestres em todo o mundo, todos os anos, representando um sério risco para a sobrevivência de espécies nativas

Por meio do curso de graduação em Ciências Biológicas, e como parte de suas iniciativas de conservação ambiental, a Universidade de Sorocaba (Uniso) atualiza regularmente a lista de espécies selvagens que habitam a Cidade Universitária. Parte desse monitoramento acontece por meio de armadilhas fotográficas, ou camera traps (que são câmeras ativadas automaticamente por movimento), geralmente posicionadas entre fragmentos florestais ou próximas a rios e lagos, onde há maior probabilidade de os animais se concentrarem. Esse monitoramento é muito importante para determinar o nível de conservação das áreas verdes do câmpus, quantificando as espécies nativas, mas eventualmente eles registram, também, invasores inconvenientes. Esses invasores — que são mais comuns do que você poderia imaginar — representam uma ameaça ecológica das graves, conforme explica o professor doutor Thiago Simon Marques, coordenador do curso de graduação em Ciências Biológicas da Uniso.

“Ultimamente”, ele conta, “quando checamos as armadilhas fotográficas espalhadas nos fragmentos florestais do câmpus, nós estamos nos deparando com registros de cães e gatos domésticos patrulhando as regiões de mata.” Num desses vídeos, registrado em 2022, é possível identificar, por exemplo, quatro indivíduos de uma espécie de ave típica da região cujo nome científico é Penelope obscura, conhecida popularmente como jacuguaçu. Pouco mais tarde, exatamente no mesmo local (que também costuma ser frequentado por outras espécies silvestres), surge um gato doméstico. Junto a outras evidências coletadas ao longo do tempo, esse é um forte indício de que há animais domésticos patrulhando as áreas nativas do câmpus com regularidade, o que está longe de ser uma ocorrência inofensiva.

Domesticação de animais ao longo das eras

Marques relembra que a domesticação de animais é um processo bastante antigo, que teve início por volta de 10 mil anos atrás, no período Neolítico, quando o ser humano passou a utilizar ferramentas feitas de pedra polida e a praticar a agricultura, deixando de subsistir somente da caça e da coleta de frutos. “A domesticação de animais aconteceu em diferentes populações humanas, em diversos locais do globo. Hoje em dia, nós entendemos a relação entre o ser humano e os seus animais domésticos como uma coevolução, em que ambos levaram vantagens mútuas — diferentemente do que pensávamos no passado, quando tínhamos a visão de que os animais domésticos eram simplesmente explorados pelo homem. Tomemos, por exemplo, a relação entre um cachorro e o seu dono; enquanto o cachorro protege uma habitação, ele recebe em troca abrigo e alimento.”

Ao longo do tempo, por meio inclusive de cruzamentos seletivos (ou seleção artificial), animais domésticos vêm sendo modificados geneticamente para cumprir funções bastante especializadas, como a segurança patrimonial, o pastoreio e inúmeras outras. E o mesmo vale para diversas outras espécies, além dos cães. Eventualmente, no entanto, esses animais passaram a configurar um problema ambiental, o qual, vale lembrar, também caracteriza uma ameaça antrópica (causada pelo homem), mas que não raro é subestimada.

Grande problema ambiental

“Quando o ser humano colonizava novos ambientes, como ilhas isoladas, seus animais domésticos eram realocados junto”, lembra o pesquisador. “Nesses novos ambientes, esses animais se encontravam com outras espécies, que não necessariamente estavam acostumadas e adaptadas à predação por canídeos e felinos. Gatos domésticos que chegavam a uma nova ilha, por exemplo, podiam dizimar populações inteiras de animais de pequeno porte, como pequenos lagartos.”

Mas o problema não ficou no passado; ainda hoje, animais abandonados em centros urbanos podem encontrar fragmentos florestais e causar o mesmo tipo de dano nas populações de espécies silvestres que os habitam. “Existem locais em que as pessoas soltam cães ou gatos, e em que outras pessoas começam a alimentar esses animais, os quais podem se reproduzir bastante rapidamente. Se há fragmentos de mata na região, esses animais soltos passam a se alimentar dos animais silvestres. Além disso, nem todos os animais são necessariamente abandonados; eles podem ser, por exemplo, animais domésticos de propriedades rurais vizinhas a um fragmento de mata, como um cão ou um gato que sai para passear à noite. E existem também condições em que os animais abandonados se tornam ferais, ou seja, voltam a apresentar comportamentos mais agressivos à presença humana (cachorros, por exemplo, voltam a ter comportamento de matilha), tornando-se ainda mais eficientes na captura de animais silvestres. Temos, aqui no Brasil, exemplos de unidades de conservação que deveriam ter como fim a conservação da biodiversidade, mas que acabam enfrentando problemas com matilhas de cachorros ferais, que caçam em grupos e conseguem diminuir bastante a diversidade de espécies nessas áreas que ocupam. Existem registros na literatura que mostram isso acontecendo”, reforça Marques.

Segundo o professor, a presença de animais domésticos nas áreas de floresta da Uniso é o microcosmo de uma situação que ocorre em larga escala, em todo o mundo. “Nós vivemos uma crise de biodiversidade mundial, em que animais domésticos podem, sim, representar um risco substancial devido à sua capacidade de predação. Os impactos à vida selvagem são comprovados”, ele garante. E vale lembrar que a predação direta não é o único problema a ser considerado; animais ferais podem, também, servir de vetor para doenças, tanto dos seres humanos para os animais selvagens restritos aos ambientes de mata, quanto na direção contrária, dos animais selvagens para os seres humanos. Vírus, bactérias e fungos que naturalmente afetariam uma determinada espécie acabam saltando para outras, podendo causar efeitos devastadores. Por tudo isso, Marques reforça a necessidade de levar essa discussão à pauta pública, no câmpus e fora dele.

Necessidade de conscientização

Como resolver, então, esse problema? O pesquisador explica que é difícil oferecer uma solução direta, uma vez que, na verdade, faz-se necessário um conjunto delas. “Essas soluções perpassam desde a educação ambiental e a conscientização das pessoas, para que não abandonem animais domésticos e não os deixem soltos fora de casa nem por um momento, até campanhas de recolhimento de animais que já estejam abandonados, inclusive a captura direta em fragmentos de mata e a realocação desses indivíduos. Mas isso nunca é simples, porque mexe com a opinião pública; muitas vezes essas formas de manejo são questionadas pelas pessoas. Há muita gente que se interessa pela causa, mas que, talvez por desconhecimento, acaba ignorando o impacto que animais domésticos podem causar à fauna nativa. Considero particularmente importante que as pessoas tenham acesso ao conhecimento científico sobre o tema, para que não se atenham somente à emoção nessas discussões”, ele conclui.

Para saber mais: artigos relacionados no Brasil e no exterior

Um artigo publicado por pesquisadores da Universidade Estadual Paulista e da Universidade Estadual de Campinas apontou que, ao longo de 44 meses de monitoramento, cães ferais foram os responsáveis pela predação de no mínimo 46 vertebrados de 12 espécies diferentes num fragmento urbano de mata atlântica na região Sudeste do Brasil. O artigo completo pode ser conferido na edição de abril de 2006 do periódico científico Natureza & Conservação. Esse é o resultado de um monitoramento específico de um caso isolado, porém outros artigos, não só no Brasil, mas também no exterior, tentam dar luz ao problema de forma mais sistêmica; em 2013, pesquisadores estadunidenses publicaram no periódico Nature Communications um artigo sobre o impacto de gatos domésticos (sem donos ou livres para patrulhar fora de casa) na vida selvagem dos Estados Unidos. A estimativa é de que, anualmente, esses animais sejam responsáveis pela morte de nada menos do que 4 bilhões de aves e 22 bilhões de mamíferos. Ambas as publicações podem ser acessadas gratuitamente. Confira os links abaixo.

“Impacto de cães ferais em um fragmento urbano de Floresta Atlântica no sudeste do Brasil”, Natureza & Conservação (2006); autores/authors: Mauro Galetti, Ivan Sazima 

“The impact of free-ranging domestic cats on wildlife of the United States”, Nature Communications (2013); autores/authors: Scott R. Loss, Tom Will, Peter P. Marra