‘Curas milagrosas’ aproximam Covid e gripe espanhola
O neurocientista Stevens Rehen, da UFRJ. Crédito da foto: Fábio Motta / Estadão Conteúdo (18/2/2019)
Em 1919, alguns meses após a gripe espanhola assolar o Brasil, a população voltava às ruas para lavar a alma no que chegou a ser chamado de “Carnaval da Ressurreição”. Há um ano, foi no Carnaval que os primeiros casos de Covid-19 começaram a se espalhar pelo País, mas parece que ainda estamos bem longe de uma nova festa da redenção.
O tempo de duração é o que talvez mais diferencie as duas pandemias. Apesar do século que as separa, ambas têm muito mais semelhanças do que os avanços sociais e científicos desse período poderiam admitir como razoáveis. É o que argumenta o neurocientista Stevens Rehen, da Universidade Federal do Rio de Janeiro e do Instituto D’Or, que publicou neste sábado (13), no portal do Estadão, artigo inédito em que faz um paralelo histórico e de saúde pública das duas doenças.
O pesquisador destaca, em especial, o negacionismo sobre os perigos dos vírus, a oferta de curas milagrosas, as mortes que não puderam ser veladas, a perda de empatia pelo tamanho da tragédia. No texto ele resgata relatos, como os do escritor Nelson Rodrigues, que poderiam perfeitamente descrever os dias atuais.
Ao comparar as pandemias, o neurocientista carioca diz que “o sentimento que resume o contraste entre o conhecimento disponível e sua aplicação em favor da saúde é de frustração”. Confira:
Quais as semelhanças que você vê entre a gripe espanhola e a atual pandemia?
As semelhanças vão além do agente de transmissão viral e sua rápida disseminação. Nesses dois momentos, governos e parte da sociedade desacreditaram a existência e o impacto das pandemias. Alguns países chegaram a omitir informações, censurando cientistas e imprensa. Também não faltaram teorias conspiratórias. Em 1918, dizia-se que a gripe tinha sido espalhada pelos alemães em garrafas jogadas ao mar. Em 2020, tem gente acreditando que o coronavírus foi criado pelos chineses. Há também um paralelo de futuro. Na década de 1920, os pacientes com transtornos mentais aumentaram sete vezes. Os sobreviventes relataram distúrbios do sono, depressão, confusão mental, houve elevação nas taxas de suicídio. Não é impossível que um cenário semelhante ocorra nos próximos anos.
Os conhecimentos científicos de hoje são imensos -- mas o obscurantismo é parecido. Paramos no tempo?
Como disse Hipócrates, existem duas coisas: ciência e opinião. A primeira gera conhecimento; a segunda, ignorância. O obscurantismo passa a ser regra quando quem nos governa nega a ciência. Paramos no tempo porque, apesar de falarmos mais do que nunca (nas redes sociais), perdemos a capacidade de dialogar, com nós mesmos, com o passado e com o futuro. Vivemos uma política de cancelamento dos saberes. Não existe planejamento de futuro no Brasil que não seja distópico. Vivemos uma realidade paralela sem ciência, sem tecnologia, sem cuidado ao próximo, sem empatia, sem vacinas em quantidade suficiente, mas com vazamento de dados de milhões de pessoas. (Giovana Girardi - Estadão Conteúdo)