Nelson Fonseca Neto
Protegido
Antes que você comece a duvidar da minha sanidade mental, uso um exemplo: fone de ouvido
O Nelson Fonseca Neto de 2023 é o mesmo Nelson Fonseca Neto de 2000? Resposta apressada: sim. Resposta repleta de marra: não. Antes que você comece a duvidar da minha sanidade mental, uso um exemplo: fone de ouvido.
O Nelson Fonseca Neto do ano 2000 pregava ferozmente contra o fone de ouvido. Dizia que o acessório simbolizava a falta de educação da sociedade contemporânea. Dizia que o indivíduo, ao usar aquele trequinho, ignorava o trepidante mundo ao redor. Que as pessoas estavam sacrificando as maravilhosas conversas nos almoços de domingo (conversas acompanhadas da esplêndida voz do Faustão ao fundo). Que as pessoas estavam abdicando das delícias oferecidas pela sala de espera do dentista (delícias que incluíam perguntas sobre a sua profissão ou opiniões interessantíssimas sobre a conjuntura política brasileira). E por aí vai. Aquele discurso que acredita num cotidiano repleto de maravilhas. Papo de comerciais de banco e de panetone. Ainda bem que o Nelson Fonseca Neto do ano 2000 foi superado.
O Nelson Fonseca Neto do ano 2023 considera o fone de ouvido uma baita, imensa, maravilhosa invenção. “Nossa, Nelson Fonseca Neto do ano 2023, e as delícias das coisas que nos cercam?” O Nelson Fonseca Neto do ano 2023 sabe que elas existem, só não acha que seja essa fartura toda. “Tudo bem, Nelson Fonseca Neto do ano 2023, mas o fone de ouvido não permite que você converse com as pessoas, por exemplo, na academia.” Pois é, Estimado Interlocutor Imaginário (que aparece aqui para dar um tom socrático ao texto), uma das serventias do fone de ouvido é justamente proteger o cidadão que frequenta academia.
Será que alguém frequenta academia por gosto, por vontade irresistível? Acho que sim, mas creio pessoas assim não formem uma multidão. Frequento a academia por necessidade. O fone de ouvido torna tudo menos difícil. “Mas, Nelson Fonseca Neto do ano 2023, você não tem amigos na academia?”. Tenho, Estimado Interlocutor Imaginário, e quando os vejo, tiro o fone de ouvido. “Entendo, Nelson Fonseca Neto do ano 2023, mas você não quer se abrir para a possibilidade de conhecer mais pessoas?”. Meu Estimado Interlocutor Imaginário, não vou à academia para isso. Estou satisfeito com as pessoas que já conheço.
O Nelson Fonseca Neto do ano 2023 recorre ao fone de ouvido na academia fundamentalmente para suportar os quilômetros percorridos na esteira ergométrica. Não é fácil encarar a tortura de correr aqueles minutos sem umas musiquinhas ou uns podcasts interessantes. Há quem consiga, e deixo aqui o meu profundo respeito a esses guerreiros. A mesma coisa para vale para a musculação. O Nelson Fonseca Neto do ano 2023 sabe que a musculação previne lesões, que a pessoa passa a andar mais retinha, essas coisas. Ele sabe de tudo isso, mas sabe que aquilo não é exatamente um prazer. Tudo fica menos árido com os ouvidos isolados. Pode ser que o sujeito incorpore o Rocky Balboa treinando na neve russa. Há de tudo um pouco nesta vida.
Chega-se, assim, a um ponto interessante. O que ouvir enquanto o sofrimento na academia corre solto? O Nelson Fonseca Neto do ano 2000 ouviria algo frenético, coisa de balada. O Nelson Fonseca Neto do ano 2023 ouve Noel Rosa. Ouve e faz direitinho o que tem de fazer. E vai tendo umas ideias que nada têm a ver com aquilo que seus olhos capturam.
Enquanto o Nelson Fonseca Neto do ano 2023 ouve Noel Rosa na musculação, bate forte o óbvio: Noel Rosa é o grande cronista brasileiro. Não “um grande cronista brasileiro”; é “o grande cronista brasileiro”. E assim, graças ao fone de ouvido, o Nelson Fonseca Neto vai atravessando este nosso vale de lágrimas (e de suor, e de endorfina).