Buscar no Cruzeiro

Buscar

Nelson Fonseca Neto

Teclas

23 de Maio de 2024 às 23:42
Cruzeiro do Sul [email protected]
placeholder
placeholder

Tínhamos em casa duas máquinas de escrever quando eu era criança. Uma, manual, era cinza, pequena, com teclas duras. A outra era elétrica, preta, grande. Lembro da marca e do modelo desta última: Olivetti Praxis 201.

Eu era criança na década de 80, e poucas casas tinham computadores. As pessoas se viravam com máquina de escrever mesmo. Quando meus pais compraram a elétrica, a manual passou a fazer parte das minhas brincadeiras. Eu poderia, aqui, enfeitar aqueles anos e dizer que escrevia contos na máquina cinza manual. Não quero mentir para vocês. Naquela época eu era leitor de gibis. Não pensava em literatura.

Eu passava algumas horas redigindo contratos e estatutos de um bizarro escritório imaginário de detetives. Um bizarro escritório de detetives de uma criança só. Não tinha problema. Minha fantasia preenchia as lacunas. Será que vem daquela época minha devoção aos romances policiais de Dashiell Hammett e Raymond Chandler? Machado de Assis já dizia que a criança é o pai do homem.

Se a máquina cinza manual caiu nas mãos da criança, a elétrica era tratada com cuidado por todos nós. Um cuidado saudável, eu diria. Aquela máquina estava longe de ser barata. Mas não era aquele cuidado maníaco, que tornava tudo sem graça. Meus pais, sempre gentis, sempre sensatos, permitiam que desfrutássemos, com moderação, das maravilhas da máquina elétrica. Lembro até hoje do barulho macio das teclas e do apitinho que soava quando a linha acabava.

Havia um abismo entre a máquina manual e a máquina elétrica. Dizer isso hoje, na época em que os computadores dominam tudo, parece bobagem. Não é. Quem viveu aquela época sabe do que estou falando. Os dedos acostumados à maquina manual agradeciam a suavidade do teclado da elétrica. Sem contar que a elétrica tinha o recurso de apagar, sem espalhafato, uma letra que aparecia equivocada. Sendo hiperbólico: é a mesma diferença entre a charrete e o automóvel.

Tudo isso para dizer que ontem, antes de dormir, gastei um tempinho vendo vídeos, no YouTube, de máquinas de escrever antigas. Apareceram uns caras desmontando as máquinas e mostrando as peças. Aquilo não me interessou. Gostei mais dos vídeos que mostravam as máquinas funcionando, trabalhando. Lendo os comentários, notei que muita gente sonhava com a volta das máquinas de escrever. Aí eu acho exagero.

Já faz muitos anos que escrevo recorrendo ao computador. Uma vez ou outra uso a caneta para anotar frases. Não consigo imaginar como seria escrever esta coluna à mão. Pior ainda se tivesse de recorrer à máquina de escrever. Seria um suplício, mesmo se eu tivesse uma máquina elétrica. É que eu sou afobado e vivo digitando errado. No computador, não é um problema sério. Na máquina, inviável.

É por isso que sempre olho admirado para as fotos de escritores segurando uma caneta ou diante de uma máquina de escrever. Imaginem Tolstói escrevendo “Guerra e Paz” recorrendo à tinta e ao papel. Não imaginem: foi assim mesmo que aconteceu. Ou o cara que escreveu um romance, em 1920, na máquina de escrever? Já viram uma máquina de escrever daquela época? É fácil pensar em dedos sangrando.

Importante segurar a onda na hora da nostalgia. Se erramos a mão, vira morbidez.