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Nelson Fonseca Neto

Conversa fiada

30 de Maio de 2024 às 22:56
Cruzeiro do Sul [email protected]
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A Patrícia e eu temos um critério para avaliar se uma pessoa é ou não interessante. Não frequentamos bares há bastante tempo, mas a gente gosta de dizer: eu conversaria com fulano por algumas horas no bar. Significa o seguinte: o sujeito é divertido, bom de papo e descontraído. Popularmente conhecido como “figuraça”.

Trânsito carregado é ótimo pra gente pensar besteira. Enquanto olho a fila gigantesca de carros à minha frente, vou cultivando minhas abobrinhas. Saibam vocês que muita coisa que apareceu por aqui nos últimos anos nasceu nesses momentos modorrentos. Cada um se vira como pode.

Na semana passada, depois de deixar o João Pedro na escola, tive de encarar uma das vias mais movimentadas da cidade, no começo da manhã. Impossível recorrer a desvios que pudessem aliviar a situação. O semáforo estava lá longe, não tinha nada que prestasse no rádio, os carros ao meu redor eram conduzidos por motoristas que estavam prestes a explodir. Seguir o instinto faria com que eu também ficasse irritadiço. Com o tempo a gente vai aprendendo que não vale a pena esquentar a cabeça com certas coisas.

Comecei, então, a pensar na história da conversa no bar. Foram surgindo nomes ligados à literatura, ao cinema, à música, ao futebol. Coisa mais engraçada: alguns nomes que eu admiro profundamente não seriam convidados por mim; outros, menos brilhantes, estariam tranquilamente comigo no bar. Vou tentar ser mais claro e concreto.

Tolstói. Acho que o Tolstói foi o escritor que eu mais citei aqui. Para mim, é o maior de todos. Mas eu não conversaria com ele no bar. Ele seria intimidador. Só falaria de coisas urgentes e grandiosas. Apontaria, implacável, o dedo para os horrores da humanidade. Eu não busco por sermão no bar.

Moacyr Scliar. Com esse eu conversaria com alegria no bar. Certamente eu encontraria no Scliar a simpatia e a simplicidade de suas melhores páginas. Eu também encontraria o gosto pelo caso bem contado, a imaginação vasta, o humor, a ironia, a simpatia pelos mais estropiados, a generosidade.

Lima Barreto. Eu dispensaria sua companhia. Muitos de seus textos estão entre os mais mordazes da nossa literatura. Justamente por isso eu teria receio de uma conversa com ele no bar. Sarcasmo é bom, mas chega uma hora que amedronta, e acho que o Lima Barreto não saberia a hora certa de parar.

Marcos Rey. Acho que, com o Marcos Rey, eu conversaria até o momento de ser expulso pelo proprietário do boteco. Caras bons de garfo costumam ser boas companhias. Eu ficaria um tempão falando com ele sobre a maravilha que é a cidade grande. Sobrariam anedotas sobre gente de tudo quanto é tipo. Em se tratando de Marcos Rey, essas anedotas estariam repletas de malandragens, jazz, cinema e literatura.

Uma mesona com Chuck Berry, Noel Rosa, Otto Lara Resende, Charles Portis, Andrea Camilleri, Edward Bunker, Mario Filho, Kafka, Rubem Fonseca, Patricia Highsmith, José Lins do Rego, Fernando Sabino, Carl Sagan, Jorge Amado e João Ubaldo Ribeiro.

Aí eu moraria no bar.