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Nelson Fonseca Neto

A morsa digital

25 de Julho de 2024 às 23:03
Cruzeiro do Sul [email protected]
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Foi uma espécie de iluminação: reparei que meu carro estava uma zona. Papel de bala no chão. Sacolas plásticas vazias aqui e ali. Farelos das tortinhas que o João Pedro vai comendo na cadeirinha dele no banco de trás. Livro velho com a capa meio bamba. Enquanto tentava botar ordem naquele horror, fui pensando umas goiabices acerca dos meus defeitos.

Vocês logo entenderão meu ponto. Meus defeitos, quero acreditar, não são gravíssimos. (Tomara que os que me são mais próximos, quando lerem isto aqui, concordem.) Sou bagunceiro. Não estou glamourizando. É que, muitas vezes, o sujeito se diz bagunceiro como se isso fosse charmoso, uma espécie de contrapartida à genialidade.

Venho tentando ser menos bagunceiro, ainda mais porque sou casado com uma pessoa que tem, digamos, um apreço monumental pelas coisas em ordem. A pessoa em questão — mais conhecida como “Patrícia” — é apaixonada por programas que mostram consultores explicando a melhor maneira de organizar um armário. É só um exemplo; é a ponta, com o perdão da imagem desgastada, do iceberg.

Também sou um pouco empolgado além da conta na hora de fazer planos. Depois vai batendo aquela preguiça quando é necessário tocar as coisas de um jeito prático. Por isso que sou a antítese do empreendedor. Acho que a literatura tem um peso nisso. A gente vai ficando, sei lá, imaginativo, sonhador, e se contenta com os castelos que vai construindo no ar.

Certamente tenho outros arranhões na alma. Daria pra escrever um montão aqui, mas quero falar agora de uma coisa que vem me incomodando quando corro os olhos naquela maldição chamada “Instagram”. Antes preciso advogar um pouco em causa própria: tenho facilidade pra pedir desculpas. Acho que sou assim porque sei reconhecer meus erros. Digo isso porque estou longe de me considerar exemplo pra qualquer coisa.

Só que o Instagram abusa da paciência mais santa. Alguém poderia perguntar: mas por que você tem conta no Instagram? Respondo rápido: pra passar raiva, pra ver como a humanidade vai mal das pernas. Se você não tem Instagram, sorte a sua. Se tem, sabe do que estou falando.

Pelo menos comigo, a coisa é assim: vão aparecendo vários vídeos com as dicas mais variadas. Esses vídeos são protagonizados pelos terríveis “influencers”. Normalmente são pessoas gesticulando freneticamente pra chamar sua atenção. E as mensagens que trazem carregam a marca da verdade brusca e indiscutível. Graças a essas pessoas aprendi que faço tudo errado na minha vida. Seguem alguns exemplos.

Não sei fazer exercício físico. Perco tempo suando na esteira ergométrica. Não caminho do jeito certo. Meu treino de musculação é um erro grotesco. O que faço não traz resultado. Corro o risco de sofrer lesões. Não sei comer. O influencer marombado diz que sou burro por não comer filãozinho com ovo. Outro diz que a maçã que engulo é uma bomba. Outro diz que bebo água demais. Outro, que ficarei desidratado. Outro grita que tenho de comprar creatina agora. Outro, que sou um otário ao comprar creatina, que encontro o que preciso no arroz, no feijão e na carne vermelha.

Não sei usar roupas. Minhas calças estão muito largas, deselegantes. Minhas calças estão muito apertadas, ridículas. Minha camiseta é esgarçada. Minha camiseta é de almofadinha. Tênis é legal. Tênis é desleixo demais. O boné tem que ter a aba reta. A aba reta do boné não está com nada.

Se você quiser sofrer, ponha a mão na morsa de bancada e gire a manivela pra apertar. Ou crie uma conta no Instagram.