Nelson Fonseca Neto
Baú
Ser criança: distorcer as distâncias. Tudo parece muito longe. Sempre morei no Centro, mas alguns amigos muito queridos moravam no Jardim Maria do Carmo ou na Santa Terezinha. O Maria do Carmo é mais longe, mas dá pra chegar até lá numa boa caminhando. Santa Terezinha é logo ali. Fácil dizer isso hoje. Quando eu era criança, lá pelos 8 ou 9 anos, tudo parecia jornada.
Gosto de bater perna pelas ruas da Santa Terezinha. Pra chegar até lá, tenho de encarar algumas subidas mais ardidas. Importante dar uma forçada na barra nas caminhadas, mas sem fanatismo. Também não pode ser muito na flauta. Quero continuar batendo meu doce de leite nas sextas-feiras em paz.
Aí então eu estava na Santa Terezinha, bem na frente da igreja. Pra chegar até ali eu subi uma parte da rua 7, peguei um pedacinho da Eugênio Salerno, embiquei na rua Pará, e aí o bicho sempre pega nessas horas. Da Eugênio Salerno até a igreja, a rua Pará é um “U”.
Na descida a gente vai dando umas brecadas. Dizem que é um bom exercício para alguns músculos das pernas. Na parte inferior do “U” a gente olha pra igreja lá no alto e pensa: por que fui inventar moda? O negócio é respirar fundo, achar uma música meio Rocky Balboa, e ferro na boneca. A gente dá umas bufadas, mas vale a pena encarar a bronca.
Desde quando decidi retomar as atividades físicas regulares, fiz a subida mais de cem vezes. Quando chego no topo da rua Pará, viro à direita. Quase sempre passo sem reparar muito nas casas ou comércios que estão mais pra dentro do bairro. Acho que é o alívio de ter vencido a subidona. Mas teve um dia que eu tive um estalo: pô, uma dessas casas, logo depois de terminar a rua Pará, é responsável por pedaços muito nítidos de coisas acontecidas há quase quarenta anos.
A memória é um treco traiçoeiro, e vocês sabem disso muito bem. A gente tenta reconstituir momentos cruciais, e nada: só umas coisas no meio da fumaça. De repente a gente é assaltado por umas imagens de uma nitidez absurda, mas essas imagens pertencem a um dia qualquer. (“Dia qualquer”, diria o psicanalista com um sorriso irônico, mas avancemos.)
É o que acontece comigo, e não venham dizer que é diferente com vocês, porque eu sei que não é. Todos temos listas de “quinquilharias” trazidas do passado pela memória. Eu poderia ficar um bom tempo fofocando com vocês aqui sobre isso, mas quero falar das imagens daquela casa da Santa Terezinha. Agora eu não sei se as imagens que vão aparecer aqui vêm de um aniversário ou se vêm da soma de alguns aniversários. Eu acho que elas vêm de um único dia.
Na verdade, de uma única noite. Era um aniversário de criança. Não era uma casa enorme. Era uma casa gostosa. Tinha bastante gente ali. Fazia um frio daqueles de cortar o rosto da gente. Meus pais não estavam lá, nem meu irmão. Eu vestia um casaco de náilon. Tinha um cara esquentando uns espetinhos na calçada, mas não pro pessoal da festinha. Foi a primeira vez que ouvi a expressão “espetinho de gato”, e achei um horror. Naquela época eu já era adepto dos gatos. Tinha um quintal na frente, que na verdade era uma garagem, e tinha um quintal no fundo. Eu e várias crianças ficamos um tempão correndo de um lado pro outro. Não era uma brincadeira organizada, com regrinhas, essas coisas comandadas por recreacionistas e monitores. Era um treco meio caótico. Nos intervalos a gente enchia a mão de coxinhas e virava umas Cocas.
Tinha uma televisão ligada. Não devia ser muito cedo, pois estava passando o filme do Conan. Eu olhava pra aquilo e ficava meio assustado. Pior era no intervalo: no dia seguinte ia passar um filme de terror chamado “Pague para entrar, reze para sair”. Enredo: assassinatos num parque de diversão. Só a propaganda já era suficiente pra botar medo. Tanto foi assim, que até hoje me recuso a ver esse filme. Esse filme e o do Conan.
Tanto foi assim, que entrar no trem-fantasma nunca foi algo bacana pra mim. Eita.