Nelson Fonseca Neto
Salvação
Você vê horrorizado que um avião caiu em Vinhedo. Pensa no sofrimento dos amigos e familiares das vítimas. Constata mais uma vez que a vida é um sopro. Decide tocar o barco mas se depara com a notícia de que golpistas estão tentando ganhar uma grana em cima do acidente. Os golpistas se passam por familiares dos que morreram. Dizem estar precisando de dinheiro para o velório e para o sepultamento.
Você não tem sangue de barata e nessas horas solta um palavrão. E torce para que esses espertalhões malditos quebrem bonito a cara.
Você soltou o palavrão e percebeu que ler a notícia da picaretagem envenenou seu dia. Então você passa a ver tudo a partir de um ângulo desfavorável. Oportunidades não faltam pra isso. Aí você pensa: em que arapuca fomos nos enfiar?
Então você decide bater perna por aí.
Você gosta de caminhar ouvindo música. Faz um frio danado. Está ventando. Pelo menos tem sol pra aliviar a barra. Você quer caminhar mais ou menos uma hora. Não sabe se escolhe músicas conhecidas ou se busca algo novo.
Você decide ousar.
Alguém disse que o último álbum que o Bob Dylan gravou é fenomenal. Você decide pagar pra ver.
Logo de cara gosta do título: “Rough and Rowdy Ways”. Algo como “Grosseria e Arruaça”. Pode parecer bobagem mas um cara na casa dos oitenta anos que bola um nome desses promete. Você já imagina que vem coisa pesada por aí.
E vem mesmo.
A voz do Bob Dylan está inacreditavelmente sombria. As músicas parecem vindo das trevas. A que fecha o trabalho tem dezesseis minutos e é de uma tristeza enorme. O cara que muita gente diz ter a voz enjoativa e fanhosa chega até aqui ombreando com os anos finais de Johnny Cash e Leonard Cohen.
Difícil pensar num elogio maior.
Você ouve a última música do último álbum do Bob Dylan e sente pra valer que arte é bem isso mesmo: serve pra te levar do ponto A pro ponto B. Você estava pensando nas baixarias do ser humano e se depara com o sublime. De certa forma você acaba reatando com a vida. E vai pensando nas iluminações que foi tendo ao longo dos últimos anos.
Os contos de Raymond Carver. Os contos de Lucia Berlin. Você não sabe se ri ou se chora.
Tudo que o Sam Shepard escreveu. E fica espantado com o cara que jogou bem pra caramba em várias posições. Poeta. Contista. Dramaturgo. Roteirista. Ator.
Paul Auster e o romance “4 3 2 1”. E passa a entender bem a expressão “abrir a caixa de ferramentas”.
Tudo que o Roberto Arlt escreveu. E pensa: esse não tinha medo de nada.
E então você volta pra casa bem mais leve.