Buscar no Cruzeiro

Buscar

Nelson Fonseca Neto

Duas enciclopédias

05 de Setembro de 2024 às 22:56
Cruzeiro do Sul [email protected]
placeholder
placeholder

Para a coluna desta semana eu tinha pensado inicialmente em escrever sobre inícios avassaladores de algumas músicas. A listinha estava pronta: “Smells Like Seen spirit” (Nirvana), “I Fought the Law” (The Clash), “Burning Down the House” (Talking Heads) e “Paranoid” (Black Sabbath).

Eu não tentaria botar banca mostrando altos conhecimentos musicais. Eu apenas falaria de como essas músicas arrebatam a gente logo de cara. Provavelmente eu faria a ponte com a literatura. Acho que alguns livros conquistam a gente já nas primeiras linhas: “Anna Kariênina” (Tolstói), “As aventuras de Augie March” (Saul Bellow) e “São Bernardo” (Graciliano Ramos).

Até que a coisa estava bem encaminhada. Ultimamente eu vou rascunhando mentalmente a coluna quando sobra um tempo. Parado no trânsito, treinando na academia, colocando o João Pedro pra dormir. Antes eu arriscava mais. Eu sentava pra escrever apenas com o tema na cabeça. Tudo ia saindo no improviso. Eu sempre fui vidrado no mundo do jazz.

Normalmente eu escrevo na terça-feira à noite. Como eu vou rascunhando ao longo dos dias, colocar a crônica no Word acaba sendo rápido. Nada de rituais ou de ambientes silenciosos. Deus me livre dessas firulas.

O texto que você está lendo agora também está sendo escrito na terça à noite. Só que hoje de manhã (terça) aconteceu algo que alterou o que estava encaminhado. Eu estava numa das escolas onde trabalho. Sala dos professores, segundo intervalo, perto das 11 da manhã. O Gilmar Delgado e eu estávamos batendo um papo.

Este mundo é muito doido. Ouço falar do Gilmar desde a época em que eu era criança. Quem diria que ele se tornaria um amigão? Quem conhece o Gilmar sabe que ele manja muito das histórias de Sorocaba. Principalmente sobre o centro de Sorocaba. É impressionante. Eu adoro bater papo com ele sobre casas antigas, comércios famosos, figuras lendárias.

Hoje nós estávamos falando sobre uma casa linda no centro da cidade. Concordamos que ela é de fato uma maravilha. Ele estava em dúvida sobre quem morou naquela casa. Aí tive de recorrer à pessoa que mais entende do centro de Sorocaba: minha vó Clélia. Liguei na hora pra ela.

Sempre que tenho uma dúvida sobre uma rua ou sobre uma casa, pergunto pra minha vó. Ela responde na hora, sem titubear. Responde sobre a rua ou sobre a casa e dá uma série de detalhes maravilhosos. Ela é uma baita contadora de histórias, traz à tona os detalhes fundamentais, sabe capturar os traços mais marcantes das pessoas. Conta tudo com doçura, com humor, com sabedoria. É um belo exemplo de como encarar a vida.

Hoje, enquanto eu conversava com a minha vó Clélia pelo telefone, o Gilmar ia, empolgado, anotando algumas coisas. Ver isso sempre será uma alegria pra mim. Num mundo tão cheio de marra, de ostentação, de gente besta nas redes sociais, de gritaria, de baixaria; enfim, num mundo que anda mal das pernas, estar perto de gente como o Gilmar e a minha vó Clélia é uma dádiva.

Enquanto as pessoas querem sair por aí cravando suas opiniões bombásticas a respeito de tudo, o Gilmar e a minha vó Clélia mostram o que realmente importa e como o barco deve ser tocado. Sou um cara de sorte.