Relíquia
Gilberto Gil ganha museu virtual com disco inédito
Obra gravada há 40 anos foi encontrada durante pesquisas para plataforma
A obra de Gilberto Gil ganhou na terça-feira (14), o maior acervo digital dedicado a um artista vivo feito pela plataforma mundial Google. Prestes a completar 80 anos, Gil terá detalhes de sua discografia e muitas informações biográficas concentradas em um ambiente único dentre outras ações pensadas pela empresa para o Brasil. O projeto chamado “O Ritmo de Gil” se tornou a primeira retrospectiva sobre um artista vivo feita pela plataforma. Os números, tão fortemente ostentados pela empresa, são imponentes: mais de 41 mil imagens e documentos e um total de 900 vídeos e gravações sobre sua trajetória.
Dos itens dispostos no campo g.co/gilbertogil, um vem com a força do ineditismo. Trata-se de um álbum sem nome gravado pelo artista em 1982, em Nova York, mas jamais lançado, encontrado há cerca de dois anos durante a garimpagem do material feita pelo jornalista Ricardo Schott, que trabalhava na equipe coordenada pela jornalista Chris Fuscaldo. “Identifiquei o material em uma das fitas que ouvimos. Vi que as canções coincidiam com um material descrito em um texto do produtor Marcelo Fróes, publicado no encarte de relançamento do disco ‘Um Banda Um’”, conta Schott.
A investida em um disco feito no exterior foi ideia do presidente da Warner no Brasil, André Midani (morto em 2019), que pensou ser o momento de Gil ter um álbum feito para o mercado norte-americano. O produtor contratado pela Warner para tocar o projeto foi Ralph McDonald, um percussionista ligado ao pessoal de Bill Withers e do saxofonista Grover Washington Jr. Isso explica o time que Ralph levou ao estúdio: o baterista Steve Gadd, o baixista Marcus Miller, o tecladista Richard Tee (autor da planetária In Your Eyes), o próprio Groover Washington Jr. e a cantora Roberta Flack. E fica inevitável não pedir aos leitores que gostam de música e que queiram saber mais sobre onde Gil foi se meter naquele 1982: dê um Google.
A canção que abre o projeto, “You Need Love”, já tem a estética sonora que ampara a voz de Gil e remete ao típico som dos estúdios de Nova York dos anos 80 (a mesma que Lincoln Olivetti começava a trazer ao Brasil). Muito reverb, muitos teclados, muita percussão e Marcus Miller mandando dúzias de slaps, as “estilingadas” hoje tão datadas. “Jump For Joy”, na sequência, começa com Roberta Flack, que a divide com Gil. Mas algo soa facilitado demais, pop demais, distante de Gil e próximo a uma Roberta que vinha poderosa desde 1977, quando gravou “Closer I Get To You”. Depois da bilíngue “Estrela (Star)”, tem a curiosa “Fill Up The Night With Music”, um AOR de Gil, a categoria de canção que os norte-americanos chamam de “Adulta Orientada para o Rádio”, os love songs das rádios românticas da madrugada.
“Come Back Tomorrow” e “Take a Holiday” têm o acento do afoxé marcante no afropop de Gil, que Steve Gadd imagina ter de fazer na bateria e que o tecladista Richard Tee não entende, e “Somebody Likes Me” é caribenha até onde pode ser na diluição daqueles arranjos. É interessante perceber a sutil negociação de entendimentos (ou na falta deles) do que era a música pop brasileira até ali, quando os estúdios norte-americanos davam as cartas sobretudo a quem entrasse por suas portas querendo fazer “um álbum norte-americano”. “Moon And Star Girl” é uma visita a “Lua e Estrela”, de Caetano, e “When the Wind Blows” seria lançada no álbum “Um Banda Um” como “Deixar Você”.
Gil diz não se lembrar o que fez com que o disco não saísse. “Foi por alguma razão. Eu falava sobre melhorias que ele poderia ter com relação à arte, mas não sei o que levou a esse engavetamento.” Não seria incomum se fosse seu próprio crivo o motivo do cancelamento de uma sonoridade que ainda hoje se desfruta mais pelos ouvidos da curiosidade. Sinais de um tempo em que tudo o que se guardou ou rejeitou no passado, e por qualquer motivo, se torne um ativo valioso. (Da Redação com Estadão Conteúdo)