Letra viva
Na tela
Cresci rodeado de livros num apartamento no centro da cidade. Um dos quartos era a biblioteca. Com o tempo os livros foram tomando conta de outros cômodos. Casei com a Patrícia, compramos um apartamento, um dos quartos é a biblioteca. Aqui os livros também estão tomando conta de outros cômodos.
Sempre carrego uma mochila quando vou trabalhar. Água, caneca pro café, apostilas, Kindle e livros. No banco de trás do meu carro, ao lado da cadeirinha do João Pedro, dá para encontrar uns dois ou três livros. Não sei o que é porta-malas sem livros, só com estepe e ferramentas.
Sou professor de literatura, gramática e redação. Gasto uma grana em livros físicos ou digitais. Não me lembro, nos últimos 30 anos, de ter passado um dia sem ler algumas páginas. Gasto parte do meu tempo livre pensando em contos ou em romances. Escrevo pro jornal.
Isso tudo para dizer que tenho uma certa proximidade com os livros. E digo isso sem um pingo de empáfia. Claro que no começo eu botava um pouco de banca. Eu vivia tentando achar brechas para falar do livro que estava lendo. Isso durou pouco, ainda bem.
Hoje, quando perguntam por que estou sempre lendo, respondo: leio porque não consigo pensar em tocar a vida de outro jeito. Isso não me faz mais inteligente. Acho que sou meio tosco. Não grosseiro, tosco mesmo. Olho espantado para as análises que umas pessoas fazem no jornal ou na televisão. Tenho pavor de firula.
Agora eu vou dizer uma coisa aqui, que vai ter o maior cheiro de paradoxo: leio bastante e sou apaixonado por televisão. E não estou falando de documentários sobre John Cage ou Samuel Beckett. Gosto do João Kléber, para vocês sentirem o drama. No idílio de nossa lua de mel em Campos do Jordão, a Patrícia e eu vimos Teste de Fidelidade.
Muitas das minhas lembranças mais gostosas são acompanhadas de vinhetas que rolavam nos anos 80 e 90. Então não é do nada que eu acho o Jô Soares um dos grandes gênios brasileiros de todos os tempos. Eu poderia ficar horas falando sobre meus ídolos da televisão.
Digamos que com o tempo meu ímpeto de espectador arrefeceu. Há um nome para o fenômeno: vida adulta. Ainda assim, a Patrícia e eu damos umas bicadas na TV depois que o João Pedro pega no sono. É louco isso. Já vi várias dramatizações mostrando o casal comendo diante da televisão como o símbolo da falência das relações contemporâneas.
A Patrícia e eu batemos um lanche assistindo televisão. É uma delícia. A gente vai fazendo uns comentários ácidos. A gente vai falando sobre apresentadores e apresentadoras que admiramos. A gente se irrita quando um mala fala besteira. Parece que estamos numa arquibancada. Não somos zumbis olhando para tela de boca aberta.
E nessas farras, dia desses, descobrimos que ainda tem MTV na televisão a cabo. Passei a minha adolescência achando a MTV o maior barato do mundo. Quem tem a minha idade vai concordar comigo. Foi ali que eu aprendi a gostar do João Gordo, do Nirvana, do Metallica, do Pearl Jam. Eu olhava maravilhado para o Fabio Massari. O cara manjava tudo de música, apresentava umas bandas exóticas. E eu ali, anotando tudo.
Agora, quando topamos com a MTV de novo, a Patrícia e eu ficamos contentes. Ela também era viciadinha no canal. Mas a nossa euforia murchou logo. Da MTV antiga, a atual só preservou o logo. Não tinha música, só uns fortões e umas fortonas dando uns amassos numa casa de praia.
Foi demais, até pro cara que julgava ter estômago forte para televisão.