A vitória da literatura
Nelson Fonseca Neto
Um pedaço da minha infância: a televisão, na sala, está ligada; eu estou no quarto; ouço o barulho que marca o início do intervalo comercial; saio correndo que nem um alucinado e quase grudo os olhos na tela; consigo, com a linguagem cômica das crianças, cantar as musiquinhas de várias propagandas. Não estou inventando: meus pais ainda hoje falam dessas reminiscências.
Você leu o primeiro parágrafo deste texto e imaginou que eu trataria de propagandas, oscilando entre a nostalgia dos comerciais dos anos 80 e a amargura em relação ao cenário atual. Até tem material e birutice para uma empreitada dessas, mas não é o que eu estou pensando para hoje. Mencionar propagandas antigas deveria ser um gancho para um comentário literário que viria nos parágrafos subsequentes.
O problema é que às vezes é difícil calibrar as coisas num texto. A introdução deveria ser concisa, uma espécie de pepita de sabedoria. Dela, da introdução, emanaria o doce cheiro de um texto bem planejado. Só que não tem jeito: somos complicados. E assim consumi preciosas linhas desta coluna. Tentemos algo mais telegráfico para as próximas linhas. Não quero perder o ímpeto que me levou a escrever este texto.
Eu gostava de comerciais. Hoje eu acho que está tudo uma porcaria. Só que de vez em quando aparece algo bacana. Por exemplo, a ESPN Brasil está passando uns filminhos geniais para mostrar que a sua cobertura da Copa é de alto nível. Nesses filminhos sempre aparece um urso dizendo as maiores besteiras futebolísticas. Basicamente, essas besteiras são os clichês que ouvimos a cada quatro anos. Sempre que vejo o urso, dou risada. É que o urso transcende o futebol e se torna símbolo do sujeito que fala besteira, não importa o assunto, com ares de sabichão.
Eu ficaria rico se recebesse umas moedas a cada vez que ouço que a literatura está agonizando. Sou rodeado por ursos que dizem: ninguém escreve bem hoje; a literatura respira por aparelhos. E por aí vai. Se bem que eu tenho que ser honesto: já fui meio urso numa época da minha vida. Eu era daqueles esnobes que mergulhavam fundo na literatura do século 19 e fazia cara de nojo para um romance publicado recentemente.
Ainda bem que passou. E passou como eu acho que deveria ser: seguindo o caminho do meio. Deixei de canto o esnobismo, mas não saí por aí dizendo que os textos mais velhos são chatos e que precisam ser superados. Por que não achar o maior barato os romances do Tolstói e as crônicas da Tati Bernardi? Alguém aqui disse que são a mesma coisa? Eu não disse que são a mesma coisa. Qual é o problema de gostar de feijoada e de um franguinho grelhado? Tudo tem o seu tempo, já diria o sábio amargurado do Eclesiastes.
Toda essa enrolação para dizer que o novo romance do Paul Auster, um dos grandes escritores vivos, é fenomenal. O livro, chamado "4 3 2 1", tem 800 páginas e consegue ser, ao mesmo tempo, uma homenagem à tradição do romance do século 19 e uma ruptura com a estrutura com a qual estamos acostumados. Paul Auster mobiliza as ferramentas para construir uma narrativa que analisa brilhantemente décadas da sociedade dos EUA. Essa gana de esquadrinhar é típica do século 19. Naquela época, escritores como Balzac, Tolstói e Dickens queriam abraçar o mundo. Ao mesmo tempo, tudo é frágil no romance de Paul Auster. Um incidente bobo coloca o universo das personagens no liquidificador. Funciona assim: a partir de um tronco narrativo fundamental, Auster cria quatro desdobramentos, que vão se alternando ao longo de centenas de páginas, para a vida de Archie Ferguson. Tudo é fascinante e tudo é perigoso. Um acidente de carro sem grandes consequências muda a vida dos envolvidos. Uma imprudência num acampamento aniquila a vida de uma família. E assim atravessamos o livro com a respiração suspensa. Dá um pouco de medo, claro; mas também abre possibilidades. Belo antídoto para o tédio. Resultado: um prodígio da literatura e uma poderosa lente para olharmos a vida.
É a literatura mandando o urso voltar para a toca.