As vozes do fim de semana
Nelson Fonseca Neto - [email protected]
Na madrugada de sexta passada, a Patrícia e o João Pedro dormiam o sono dos justos. Não consegui acompanhá-los. É que eu tinha abusado do café ao longo do dia. Sem chance de dormir na mesma sintonia que os meus amores.
Eu poderia pegar um livro. É o que eu faço na esmagadora maioria das vezes. Mas deu preguiça. Recorri ao celular. Eu poderia procurar um vídeo antigo qualquer dos anos 80. Sou viciado nisso. Mas eu queria algo diferente.
Abri o aplicativo HBO GO. Sem chances de ver uma série. É uma espécie de pacto que eu tenho com a Patrícia. Só assistimos a séries juntos. Fui até a seção dos documentários. A lista era vasta. Assuntos de tudo quanto é tipo. É espantoso. Estava difícil decidir.
Até que eu me deparei com algo que prometia: “Breslin e Hamill: as vozes de Nova York”. Jimmy Breslin e Pete Hamill são dois dos meus ídolos literários. Foram celebridades do jornalismo ao longo de várias décadas. Suas colunas eram lidas avidamente. Não faltavam polêmicas. Em muitos casos, seus textos causavam verdadeiros rebuliços. Breslin e Hamill, acima de tudo, foram homens corajosos.
Eles mostram muito bem o que é uma antítese. Breslin era telegráfico e duro. Hamill era lírico e compassivo. Sortuda é a época que testemunhou o trabalho dos dois ao mesmo tempo. Mergulhar no trabalho deles não deixa de ser melancólico. O jornalismo perdeu muito da sua força. Um dia, quem sabe, teremos dias melhores.
Voltando ao documentário. Trata-se de algo primoroso. Vida e obra aparecem perfeitamente calibradas. Recomendo vivamente aos estudantes de jornalismo. Eu sou meio velho, e mesmo assim saí com uma baita vontade de escrever umas matérias.
A jornada terminou lá pelas três da manhã. O sábado foi meio preguiçoso, como deveria ser para todos nós. Como a vida é engraçada, não? Às vezes, a gente está num estado de espírito favorável a jornadas mais robustas. Por exemplo, a leitura de romanções. E, às vezes, a gente está num estado de espírito mais borboleteante. Por exemplo, a leitura de uma página aqui e outra ali de vários livros.
No sábado passado, eu estava borboleteante. Começava um livro e parava na página 10. Pegava outro e parava na página 8. Pegava outro e parava na página 20. Isso não acontece sempre comigo. Aprendi a lidar melhor com dias assim. Antes eu ficava me culpando. Eu forçava a barra. Passava horas de sofrimento. Como se alguém estivesse esperando um relatório a respeito daquela leitura. Ainda bem que essa tontice passou. Hoje eu encaro esses dias instáveis com naturalidade. Talvez, hoje eu me dou conta, eles sejam necessários.
Mas não foi um sábado totalmente de bobeira. Alguma coisa sempre fica. É essa maldita mania de sempre ligar os pontos. Na madrugada, eu tinha visto um documentário sobre dois gigantes do jornalismo. Eles eram dotados de um profundo senso de observação. Ou seja: realismo na veia. No sábado, dei umas bicadas num romance de Tom Wolfe. Outro gigante. Realismo na veia também. Depois circulei por um romance de Aharon Appelfeld. Aí a coisa muda de figura. Entra em cena a alegoria perturbadora. Depois, me aventurei na biografia de Philip K. Dick. Ficção científica, paranoia, teorias da conspiração, pessimismo. E o mais assustador: vários momentos de profecia.
É que, junto a essas leituras, zanzei pelas redes sociais. Sei que vocês estão por dentro do que está acontecendo. As discussões em torno da política parecem com aquelas rinhas de galo. Todos os envolvidos precisam escrever e dizer coisas bombásticas. Ainda que sejam cretinas. Ainda que não tenham a mínima conexão com a realidade. Ainda que sejam criminosas. Dá até para entender. Seria surpreendente se os envolvidos usassem as redes sociais para divulgar declarações sensatas. Perderia a graça. O pessoal quer ver sangue mesmo.
Jimmy Breslin e Pete Hamill escreveriam colunas afiadas sobre a situação. Tom Wolfe nos entregaria um catatau divertido de umas 700 páginas. Appelfeld, um livro conciso e metafórico. Seria uma maravilha se os nomes que eu acabei de mencionar fizessem isso. Faltou mencionar Philip K. Dick. Não sei se sairia um conto ou um romance. Só sei que ele teria razão.