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Letra Viva

Leitura torta

Artigo escrito por Nelson Fonseca Neto

28 de Maio de 2021 às 00:01
Cruzeiro do Sul [email protected]
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Anos atrás, minhas leituras se davam por blocos. Eu escolhia um autor e lia sua obra completa. Só mudava de bloco depois de haver cumprido minuciosamente o itinerário proposto. Depois as coisas mudaram.

Fui ficando indisciplinado, arisco, marrento. Larguei mão das leituras organizadinhas. Não estou aqui para me gabar. Eu realmente não sei se a mudança foi para melhor. Só estou contando o que aconteceu.

Antes era fácil encontrar um padrão para os livros que eu ia enfileirando. Passei um tempo enorme na companhia de escritores brasileiros da década de 30 do século 20. É apenas um exemplo. Foi útil passar assim alguns anos. Ajudou no início da minha carreira de professor. Eu estava com as leituras em dia. A organização intelectual impediu o desastre que sempre espreita as primeiras aulas.

Conforme fui ganhando confiança profissional, as leituras tornaram-se borboleteantes. No começo foi estranho. Lembro bem das primeiras tentativas indisciplinadas. Medo e sentimento de culpa. Depois a gente aprende a lidar com isso.

Agora, e já vai um tempão nisso, pulo de canoa em canoa sem qualquer tipo de pensamento sombrio. Admiro as pessoas que precisam seguir um programa mais rigoroso de leitura e fazem isso sem enlouquecer. É por isso que eu nunca serei uma sumidade, aquelas figuras que manjam tudo de um dado assunto.

Conheço gente que domina meticulosamente, por exemplo, vida e obra de Drummond. Pessoas assim são chamadas para simpósios, palestras e festivais literários. Em datas comemorativas, assinam artigos respeitáveis. É um jeito de tocar a vida. Jeito respeitabilíssimo, mas algo distante do meu temperamento.

Vou falar o que li recentemente. Quero mostrar a bagunça das minhas leituras. Os últimos quatro livros lidos já dão uma boa ideia do drama: “Todos os nossos antepassados” (Natalia Ginzburg); “Onde os velhos não têm vez” (Cormac McCarthy); “Diário da guerra do porco” (Adolfo Bioy Casares); “Contos de Odessa” (Isaac Bábel).

Ou seja: Itália das décadas de 30 e 40; EUA dos anos 80; Argentina dos anos 60; Ucrânia do início do século 20. Amálgama contendo: miudezas familiares da classe média italiana, fortalecimento e queda do fascismo, narcotráfico no Texas, armas de grosso calibre, caminhonetes turbinadas, mortes sangrentas, velhice em Buenos Aires, dignidade no declínio físico, cafés, bifes suculentos, mate, truco, mafiosos ucranianos, comerciantes, pogrom.

Muitos pensarão: jornada indigesta. Não são as típicas leituras instrutivas, daquelas que fazemos para, sei lá, subir na vida, conseguir um emprego, falar bonito, essas papagaiadas. Também não é um esquema para “viajar sem sair do lugar” e angariar reconhecimento dos que têm o azar de ouvir comentários melosos sobre o ato de ler. Não tem nada dessas firulas.

Eu leio, e leio assim, porque não consigo fazer de outra maneira. Eu leio porque é das poucas coisas que faço razoavelmente bem. Eu leio porque não consigo imaginar uma outra forma de passar o tempo.

É tudo muito mais simples do que a gente imagina.

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