Dom Julio Endi Akamine
Os demônios
O Concílio de Latrão IV (1215) rejeita toda forma de dualismo (...) Nem os anjos tampouco os seres humanos estão isentos de se decidirem a favor ou contra Deus
Dom Julio Endi Akamine
Em tempos de internet e redes sociais, qualquer assunto aparece soterrado e entulhado de opiniões divergentes, contraditórias e equivocadas que provocam outra avalanche de mais opiniões contraditórias. Mais do que nunca é preciso recorrer a fontes confiáveis a fim de não se perder em meio à selva de comentários e curtidas.
Para o cristão, a fonte a que sempre se deve recorrer é a Revelação. Sobre o tema dos demônios encontramos na Bíblia e na sua interpretação autêntica doutrina segura para a inteligência e significativa para o agir cristão. Tentemos resumir em afirmações essenciais o que se pode encontrar na Revelação.
O Antigo Testamento fala explicitamente da existência do demônio em Jó 1,6-12; 2,1-7; Sb 2,24; Gn 3,1-5; 3,14-15. A doutrina, desde o livro de Jó até ao livro da Sabedoria, é a mesma: Satanás existe como ser pessoal, sujeito à Sabedoria de Deus, e procura prejudicar o ser humano por desgraças para instigá-lo à sublevação contra Deus e induzi-lo à apostasia. Contudo a pessoa, ajudada pela graça, é capaz de resistir e de conservar a fidelidade a Deus. Também o Novo Testamento conhece a existência do adversário hostil a Deus.
O que faz o demônio? Satanás procura reduzir todo mundo ao seu domínio. Como no ser humano se manifesta mais explicitamente a sua atividade antidivina, assim nele se revela o poder salvador e protetor, vivificante e visível de Cristo. O poder do demônio é rompido pela força da Palavra de Deus que se anuncia e pela fé da pessoa a esta Palavra.
Três são os influxos do demônio: (1) pela tentação para o pecado, (2) pela posse sobre o homem, (3) pelo dano infligido a outras criaturas (distintas do homem). Como se pode constatar, a natureza do influxo do demônio sobre os homens não é a mesma da de Deus: Deus, com sua graça, influi na própria essência humana; um espírito criado, como o demônio, só pode influir mediante doutrinação, persuasão, influxo sobre os apetites sensitivos e mediante excitação de afeto.
Qual é a origem dos demônios? No AT não encontramos nenhuma explicação. No NT há a constatação de que Satanás e seus sequazes são anjos decaídos (Ap 12,7-9; Jo 8,44; 2Pd 2,4).
Dessa constatação se coloca a questão: qual pecado transformou os anjos em demônios? A Escritura diz que é o orgulho (Eclo 10,14-15/12-13; 1Tm 3,6) que equivale a uma auto-divinização. Só Deus pode ser em si mesmo seu fim último. Se os anjos procuraram a sua consumação em si mesmos, o certo é que tentaram ser, em sua independência e seu domínio, iguais a Deus. Com efeito, na criação, Deus concedera aos anjos a graça sobrenatural da participação em Sua vida divina, e como tal ela pode ser rejeitada. Assim o mistério da iniquidade (2Ts 2,7) se revela como negação da graça. Quando o anjo se rebela contra Deus, o faz em sua pura espiritualidade e maior perfeição de sua natureza, com energia e decisão de vontade muito maiores que as do ser humano. Por isso a prova dos anjos é uma só e, uma vez decaído, não mais se reergue.
O Concílio de Latrão IV (1215) rejeita toda forma de dualismo e salienta que nenhuma criatura, ainda que criada por Deus, esteja já, por sua essência, confirmada no bem. Nem os anjos tampouco os seres humanos estão isentos de se decidirem a favor ou contra Deus. Os demônios totalmente empenhados no mal esforçam-se por mover também o homem, que ainda está por decidir, à rebelião contra Deus e Cristo.
Há um chefe supremo a quem os demais anjos, apostatando, seguiram. “O pecado do primeiro anjo foi motivo para os outros pecarem; motivo que não coagiu, é verdade, e sim, que persuadiu, por assim dizer” (STh I, q.63, a.8).
Como podemos nos proteger da ação demoníaca? Não há em parte alguma na Bíblia técnicas ou práticas esotéricas protetivas. Feitiço e magia não têm lugar ao sol no NT. A única arma do cristão contra Satanás é a pregação de Cristo e a doação do coração a Deus, plena de fé e amor. Quanto mais se apega a Deus, mais o demônio se afasta.
Por que Deus permite a ação de Satanás? Se Deus não impede a ação de Satã, é porque não deseja destruir a liberdade da sua criatura, mesmo quando esta se rebela contra Ele. Ao mesmo tempo, Deus se empenha junto com sua criatura na luta contra o mal, pois assim ela alcança ulterior perfeição. A ação maléfica no mundo não pode absolutamente impedir a ação salvadora de Deus. Mesmo que contrária a Deus, a ação maléfica acaba por confirmar paradoxalmente a ação salvadora de Deus.
Dom Julio Endi Akamine é arcebispo metropolitano da Arquidiocese de Sorocaba