João Alvarenga
Homenagem aos compositores
A morte súbita do afinadíssimo Agnaldo Rayol que, aos 86 anos, partiu tragicamente, vítima de um acidente doméstico, levou-me refletir sobre um assunto pouco discutido no Brasil: o reconhecimento dos compositores e a luta deles pela defesa dos direitos autorais. Essa questão tem gerado disputas silenciosas nos tribunais, especialmente quando o autor da obra não recebe um centavo pela vendagem de seu trabalho. Isso é tão problemático, que o saudoso musicólogo Zuza Homem de Melo sempre chamava a atenção do mercado fonográfico brasileiro para esse descaso. No seu entender, o talento genuíno não podia ser desmerecido.
No entanto, nem mesmo a mídia (leia-se TV), tem atentado para esse importante detalhe. Aliás, esse assunto “ferve”, quando observamos os populares programas de auditório, em que o artista canta, junto com o público, a música que o consagrou; mas, nem de longe, faz questão de citar o autor de seu sucesso. Infelizmente, em nosso País, é nítida a cultura de valorização do intérprete em detrimento do compositor.
Tal fenômeno ocorre com maior evidência, quando a voz personifica o cantor, tanto que muitos acreditam ser ele o “dono” da raridade. Isso se deu com Rayol com a belíssima “Ave Maria”. Embora essa canção tenha sido interpretada por vários artistas internacionais de peso, popularizou-se, por aqui, na voz desse cantor. Aliás, essa música se tornou o seu “cartão de visita”’, pois era requisitada em todos os seus shows, principalmente em momentos especiais, como a celebração do Natal. Porém, poucos se dão conta de que se trata de uma peça clássica escrita pelo francês Charles Gounod, em 1859, a partir de uma partitura composta por Bach, 137 anos antes.
Lamentavelmente, o terreno musical brasileiro é bem arenoso, pois pouco se fala sobre a genialidade de quem compôs uma canção que, muitas vezes, atravessou o tempo, e permanece viva no imaginário popular. Isso se evidencia, especialmente, se determinada música fez parte da trilha de alguma novela, filme ou série. Nesse contexto, Zuza Homem de Melo costumava classificar tais canções de “pérolas musicais”, pelo fato de que foram compostas num momento de extrema dedicação e originalidade. Ou seja, “foram tocados por uma força divina inexplicável”.
Todavia, nem sempre esse esforço é reconhecido. O letrista Paulo Cesar Pinheiro é um exemplo claro dessa situação. Apesar de ser autor de mais de duas mil composições — principalmente sambas de enredo das escolas do Rio e de São Paulo — seu nome é pouco lembrado; mas, para quem não sabe, ele compôs a maioria dos sambas que a inesquecível Clara Nunes imortalizou, sendo os mais populares: “Canto das três raças” e “As forças da natureza”, em parceria com João Nogueira, pai de Diogo Nogueira.
No entanto, esse problema não se restringe aos sambistas; mas afeta, também, outros gêneros musicais, até mesmo o sertanejo. Por acaso, o leitor já ouviu falar no nome de Benedito Severino? Pois bem, ele é o autor da letra da festejada “Boate Azul”. Presente no repertório de várias duplas, essa música se tornou um ícone da boemia, na atualidade, pois é cantada nas mesas dos bares do País.
Por outro lado, quando o autor também interpreta a obra, a situação tende a ficar menos problemática; porém, há certas canções que, embora sejam especiais, estranhamente, não conquistam o grande público. Refiro-me à emblemática “Mensagem do Além”, de Milionário e José Rico. Se o leitor ainda não ouviu essa canção, faço este convite: escute-a. Há clipes dela na internet. Posso estar enganado, mas tal criação é superior à famosa “Estrada da Vida”.
De modo inédito, a letra foge do apelo sentimental que ronda as canções do gênero, em favor de uma pegada mais mística. Temos a impressão de que se trata de uma “psicografia” de tom espírita. Ou seja, o “eu lírico” da canção partiu desta para melhor. Talvez, isso tenha causado arrepios. Bom domingo!
João Alvarenga é professor de redação.