Dom Julio Endi Akamine
Homem e Mulher
“O Senhor Deus disse: Não é bom que o homem esteja só” (Gn 2,18). Esse desígnio de Deus em relação ao homem acena para a criação da mulher. Deus já tinha decidido: “Vou providenciar um auxílio que lhe corresponda” (2,18). Antes, porém, de providenciar a auxiliar que lhe corresponda, Deus modelou do solo todos os animais selvagens e todas as aves do céu, e os trouxe ao homem para ver que nome lhes daria (Gn 2,19). Deus é apresentado como um pai que educa sem forçar os ritmos de amadurecimento do filho, mas, que ao mesmo tempo, não deixa de incentivar e favorecer esse amadurecimento. Ao dar nome aos animais, o homem começa a exercer a sua vocação de dominar “sobre os peixes do mar, as aves do céu, os animais domésticos”. Ele como que toma posse do seu domínio sobre o reino mineral, vegetal e animal. Dar nome é o mesmo que organizar e determinar o lugar de cada ser criado em relação a quem impõe nomes. Se Deus criou para pôr tudo a serviço do homem, este, ao impor nomes aos animais, toma consciência de sua primazia em relação a tudo, e tudo ordena em função de sua soberania em relação às outras criaturas.
É exatamente depois de ter tomado consciência de sua ligação com os seres criados, uma vez que é também criatura entre criaturas, que o homem percebe que se eleva sobre as criaturas e, assim experimenta a solidão. O homem toma consciência da própria superioridade e cai na conta de que não pode se colocar em igualdade com nenhuma outra espécie de ser vivo sobre a terra. Ele designou com nomes todos os animais domésticos, todas as aves dos céus e todos os animais ferozes; contudo, não encontrou para si uma auxiliar adequada (Gn 2,20).
Ao levar os animais formados do pó da terra ao homem, Deus como que desperta nele a questão da sua própria identidade: quem sou eu? A solidão original do homem tem um significado negativo: o ser humano é criatura em meio ao mundo visível, mas percebe que é mais do que o mundo visível.
O homem está só, diante de Deus: chegou à consciência de que é um ser diverso e distinto de todas as criaturas. Essa consciência que tem de si mesmo em confronto com o mundo criado revela que é um ser que possui a faculdade cognoscitiva a respeito do mundo visível. Com este conhecimento ele, em certo modo, sai para fora do próprio ser, e isso o torna ciente da sua peculiaridade. A consciência de si é o que o torna um ser solitário. Solidão original significa autoconhecimento.
A solidão original é o que possibilita ao homem se distinguir, de um lado, de Deus e, de outro, de todos seres vivos. Com essa solidão original, o homem se afirma como “pessoa”. O homem descobre que estar só é ser pessoa: ele não é algo, mas alguém. É capaz de se conhecer, de se possuir e de se doar livremente a outra pessoa. É exatamente isso que o homem percebe quando não encontra entre os animais uma auxiliar que lhe corresponda: não há outra pessoa a quem possa se doar e dela receber uma resposta.
Somente depois que o homem constata a própria solidão, Deus cria a mulher: Então, o Senhor Deus fez vir um sono profundo sobre o homem, o qual adormeceu. Tomou um lado (costela) dele e fechou a carne no seu lugar. E do lado (costela) que tomara do homem, o Senhor Deus formou a mulher e a trouxe ao homem (Gn 2,21-22).
O relato do Gênesis não é um relato mítico. É uma teologia e antropologia profundíssimas em forma de relato mítico. É um preconceito classificar os relatos pré-científicos como mera mitologia anticientífica. O homem bíblico pensava tão bem quanto o atual e, no caso do autor bíblico, melhor do que o de hoje. Inspirado pelo Espírito Santo, o relato do Gênesis continua nos ensinando.
Dom Julio Endi Akamine é arcebispo metropolitano da Arquidiocese de Sorocaba