João Alvarenga
Kafka ao quadrado

Neste artigo, sondaremos o terreno do absurdo, no qual, em tese, situações inimagináveis nunca deveriam acontecer; mas, estranhamente, saem das sombras e se materializam em fatos assustadores ou bizarros. Parece que há um terreno arenoso em que realidade e o sonho se misturam para nos confundir. Fica a impressão de que tais acontecimentos se situam entre o limite do real, que é tangível, e o surreal, o intangível. A tal contexto, alguns estudiosos chamam de “Situação Kafkiana”, ou seja, é uma força inexplicável que, não só foge do controle humano, como gera um efeito dominó, pois desencadeia uma sucessão de outros pequenos fatos de proporções, às vezes, cômicas ou trágicas.
Embora muito se investigue sobre isso, inclusive os psicólogos tentam desvendar esse mistério, a mente humana ainda não sabe que ambiente ou momento se tornam favoráveis a tais acontecimentos. Há um ínfimo instante em que perdemos a consciência da nossa condição humana para nos brutalizarmos. Afinal, em que momento o caos se instala? Surge outra pergunta: quais condições abrem esses portais que interferem na realidade, que antes parecia estar sobre rígido controle? Apenas uma coisa fica evidente: no fundo, estamos vulneráveis ao improvável.
Mas, de onde surgiu o neologismo “kafkiano”? Para espanto de muitos, tal termo, há muito tempo, já consta do Dicionário Aurélio. Na verdade, trata-se de uma referência ao escritor tcheco, de língua alemã, Franz Kafka. Pois, alguns teóricos o apontam como o “pai” da literatura absurda, já que sua obra tem como foco central situações do cotidiano que, subitamente, são alteradas por contextos inusitados que quebram totalmente o fluxo da narrativa, a fim de inserir os leitores num universo que foge daquilo que se espera como racional, no sentido mais humano da palavra.
O livro mais famoso desse escritor chama-se “O processo”, que foca a luta inglória de um pacato cidadão, Josef K., para tentar provar sua inocência e, no final, descobre que: “todo ser humano já nasce com uma sentença de morte”. Apesar dos spoilers, o que, realmente importa, nessa narrativa, é o fato de que Kafka tenta desvendar os meandros da justiça. Assim, nessa “odisseia” sobre o nada, somos arrastados para o terreno da dúvida: em que medida a justiça é justa?
É bom lembrar que o absurdo não se restringe à literatura, estando presente na poesia, na pintura e, também, no teatro. Aliás, é no teatro que tal temática ganha maior expressividade. Tanto que os dramaturgos Samuel Beckett e Eugênio Ionesco compartilham a paternidade do absurdo na dramaturgia, pois suas peças também transitam no universo do impensável. Há, ainda, muitos filmes e séries que se servem desse inquietante conflito entre o real e o surreal. A impactante comédia “Depois de Horas”, de 1985, dirigida por Martim Scorsese, é pura adrenalina kafkiana.
Atualmente, disponível na Netflix, a série sul-coreana, “Carma”, dirigida por Lee Il-Hyung, é apontada como a combinação que potencializa a estética kafkiana, ao misturar suspense e caos, em que nada sai conforme os personagens planejam. No meio do caminho, tudo vira no avesso, quebrando qualquer ideia de previsibilidade, como o público está acostumado nas séries convencionais.
Fora da ficção, nos confrontamos, diariamente, com muitas notícias bizarras que, além de não entendermos o contexto, ficamos angustiados. Como exemplo, citamos algo apavorante que aconteceu em 2017, quando as TVs mostraram algo terrível: numa cadeia do Ceará, durante o motim, um dos detentos, após ser decapitado, teve sua cabeça usada como bola. Também foi noticiado aqui, há algum tempo, que uma mulher foi roubada dentro de uma delegacia de uma cidade da região, exatamente no momento em que foi dar queixa de furto. Isso mostra que a realidade brasileira está cheia de fatos sinistros. Na política, então, nem se fala. Mas, isso é assunto para outro artigo.
João Alvarenga é professor de redação.