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Fortes, só que não

06 de Fevereiro de 2019 às 10:35

Ilustração: Vanessa Tenor

A APA (American Psychological Association) lançou um texto com orientações especiais para práticas com homens e meninos (procurar na internet: APA Guidelines for Psychological Practice with Boys and Men. https://www.apa.org/about/policy/boys-men-practice-guidelines pdf). Em um primeiro olhar, por que atenções especiais se o mundo é masculino?

Stephanie Pappas lembra (https://www.apa org/monitor/2019/01/ce-corner.aspx) que 95,2% dos responsáveis pelas 500 maiores empresas monitoradas pela revista Fortune são homens. O Congresso dos EUA (legislação iniciada em 2017) tem apenas 19% de mulheres em sua composição. Definitivamente, ser homem não é algo a ser protegido ou amparado por cuidados especiais. Há pés de barro no colosso de bronze.

Cerca de 90% de todos os homicídios nos EUA são praticados por homens. Nós somos assassinos e também vítimas: 77% dos que são mortos são do sexo masculino. Há 3,5 vezes mais possibilidades de um homem se matar do que uma mulher. Os homens também vivem menos do que as mulheres. Dominam o mundo e são vítimas dele? Existe algo de podre no reino da Dinamarca.

Li o relatório da APA e cheguei à conclusão oposta à do meu amigo Luiz Felipe Pondé. Os especialistas da APA não querem “curar” alguém da sua heterossexualidade. A identidade sexual profunda resiste a mudanças e tudo já foi tentado, da fogueira ao tratamento hormonal, da lavagem cerebral aos choques de terapias agressivas. O resultado mais comum tem sido o suicídio ou a farsa. O mais importante é que somos mais complexos do que os planos ideais de sociedade. Refletir sobre isso pode ser importante para a vida dos homens.

Como eu entendi o relatório? Determinadas concepções do masculino podem ser ruins para homens também. Os meninos e os homens adultos estão lançando um grito de socorro e estão morrendo em números assustadores. A violência é antiga, os desafios são novos.

Em momentos de tantas opiniões de senso comum, é bom ouvir quem pesquisa de forma sistemática. O relatório dos profissionais dos EUA é um bom começo. Não vou desenvolver os temas tocados no texto da APA. Cada um deve ler e formar suas conclusões. Imagino que, a partir ou além dele, devemos entender que não existem modelos fixos. As chamadas “múltiplas masculinidades” não são, exatamente, um convite para que se vista de pink todo menino, mas ensinar que o modelo cowboy do Velho Oeste, com andar à John Wayne, não é o único. Trabalhar com “essências” costuma causar frustração dado o aleatório da espécie humana. Exemplo? Eu nada sei sobre dança e sou de uma quase total incapacidade para a coordenação exigente do ato de bailar. Porém, imagino que o estudo de dança exija tanta concentração, disciplina física, dor e capacidade de se superar quanto fazer jiu-jítsu. Um seria mais “masculino” do que o outro? A liderança de um chefe de cozinha não é menos épica do que a liderança de um engenheiro de uma equipe. Ambos trabalham com hierarquias, conhecimentos técnicos, maestria na resistência de materiais, cálculos de possibilidades, pensamento racional e objetivo. Penso nas múltiplas masculinidades como o projeto em que pais e mães e todos os responsáveis pela educação de meninos se empenhem no projeto da felicidade e do pleno potencial de cada um e não em fixação de modelos prévios. Ensinar que eu tenho liberdade de escolha e que eu não preciso agradar ao mundo, mas procurar nos meus gostos e desejos o prazer do esforço e da busca dos desafios internos e externos do aperfeiçoamento é algo muito forte e importante para estimular em todo o processo educativo. Educar crianças é um gesto complexo porque implica estar minimamente resolvido consigo mesmo, ser capaz de educar não para me agradar ou para melhorar o mundo que eu suponho que tenha sido meu. Educar é um ato de generosidade porque passa por cima das minhas convicções subjetivas e se abre para o novo e surpreendente de cada ser humano filho/aluno a minha frente. “Na minha época era assim” é um dado melancólico que fala das minhas dores e reinvenções de memória, nunca poderia ser um ponto de partida para um projeto de futuro.

Sim, cada pai e cada mãe têm valores e a família é um nicho privilegiado para que sejam transmitidos. Porém, o valor maior é sempre saber que o “sábado foi feito para o homem e não o homem para o sábado” (Marcos 2,27). A crítica de Jesus é a quem coloca a norma como o objetivo e não como instrumento de se chegar além de si rumo ao divino. Todo valor, todo, sem exceção, deve sempre ser questionado na sua possibilidade de fazer cada ser humano crescer, aperfeiçoar seu caráter, atingir felicidade e capacidade de compreensão de si e do mundo. O objetivo não é “ficar bem na foto”, mas saber em quais fotos e com quem desejamos, de fato, estar. Isso, inclusive, varia ao longo da vida. Nem as estrelas são eternas.

Os meninos, em particular, são apresentados a normas pétreas sobre o que é ser um homem e os dados sobre violência parecem indicar que os modelos deveriam ser repensados. O problema nem está tanto nas crianças, nos meninos em particular, mas em como a minha geração foi criada com concepções rígidas sobre tudo e tem muita dificuldade em trabalhar com mudanças. Assim, a educação passa a ser um modelo de corrigir minhas memórias e não uma ideia específica sobre algo inteiramente novo, irrepetível, especial e distinto de você: seu filho. É muito complicado não fazer do filho/aluno espelho do meu medo ou da minha frustração. Trabalhar com os meninos como seres diferentes do que eu fui é uma maneira de preservar, talvez, sua vida no futuro. Ser homem, hoje, está mais perigoso do que nunca, mortal até. Está na hora de repensar a educação masculina para que os homens sobrevivam. A força deve vir da felicidade e não do roteiro social. É preciso ter esperança.

Leandro Karnal é articulista da Agência Estado e escreve para o Cruzeiro do Sul.