Coisa séria
Chega de brincar com o dinheiro público
O sorocabano vem tentando entender as justificativas para despesa de R$ 29 milhões feita pela gestão municipal anterior no final do mandato
Irresponsabilidade, incompetência, negligência, desleixo, displicência, desmazelo, relaxo... O leitor pode escolher qualquer um desses termos ou até somar todos eles para descrever a maneira pela qual grande parte dos agentes políticos trata o dinheiro público.
Lamentavelmente, Sorocaba não é imune à secular epidemia de pouco caso que assola todos os níveis governamentais do País desde a implantação das capitanias hereditárias. Uma rápida consulta ao acervo digital do jornal Cruzeiro do Sul revela um sem número de peripécias, dos mais variados tipos, praticadas pelos mandatários locais ao longo dos últimos 119 anos, sempre com desfechos semelhantes: prejuízos para os cofres municipais.
Para a angústia e desesperança do cidadão sorocabano que trabalha duro e paga seus impostos -- numerosos e elevados, por sinal -- a fim de manter a máquina pública funcionando, chefes do Poder Executivo e membros do primeiro escalão, muitos deles despreparados para a função, usam e abusam do empirismo, transformando o dia a dia de seus (des)governos em uma sequência interminável de tentativas e erros.
Desde o início do ano passado, por exemplo, o sorocabano vem tentando entender as justificativas para uma despesa de R$ 29 milhões realizada nos últimos dias de 2020, às vésperas do encerrramento do governo da ex-prefeita Jaqueline Coutinho.
Com essa fortuna -- quase 1% do orçamento total do município naquele ano -- foram adquiridos aproximadamente 1 milhão de exemplares de livros paradidáticos. Ou seja, materiais que exploram mais aspectos lúdicos do que os livros didáticos comuns e, dessa forma, podem ser eficientes do ponto de vista pedagógico. Mais uma boa intenção para ajudar a povoar o inferno.
Para completar, a despeito do interesse geral pela elucidação do caso, a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) criada pela Câmara Municipal para investigar os procedimentos da compra completou aniversário na última quarta-feira (23) ainda muito longe de cumprir o seu papel.
Apontando as limitações sanitárias impostas pela pandemia do novo coronavírus como explicação para atraso tão prolongado na execução da tarefa, os vereadores encarregados da apuração da compra milionária deram início às oitivas de testemunhas e de agentes diretamente envolvidos na aquisição dos livros apenas na semana passada. Até o momento, a comissão tomou dez depoimentos.
Destes, apenas três foram abertos ao público, por envolverem agentes políticos. Estes, têm em comum o fato de serem pouco esclarecedores sobre o caso em si. A expectativa, agora, é que os demais sete depoentes, todos eles servidores municipais -- por isso o sigilo temporário sobre o que disseram --, possam colocar alguma luz nessa história.
Em resumo, todas as interrogações de um ano atrás continuam no ar, começando pela conveniência do investimento em circunstâncias tão insólitas, passando pelo processo licitatório, escolha dos títulos, local de armazenamento, a duvidosa adequação do conteúdo ao público alvo, até findar no gigantesco aparato logístico necessário à distribuição do acervo a toda a rede municipal de ensino.
O que se pode depreender, por enquanto, das respostas apresentadas nos depoimentos abertos é a confirmação do que já despontava nas entrelinhas: o processo de aquisição dos livros, assim como já ficou evidente em inúmeros outros casos, foi vítima de uma tremenda falta de planejamento.
A ex-prefeita Jaqueline Coutinho, responsável direta pela compra -- já que o então titular da pasta de Educação, professor Wanderlei Acca, faleceu em novembro do ano passado --, manteve o discurso de lisura sobre o processo.
O que, mesmo sendo comprovado, não elimina a possibilidade de erro crasso no que se refere aos trâmites administrativos. Os outros dois depoentes, o secretário da Educação, Márcio Bortolli Carrara, e o procurador-geral da Prefeitura, Carlos Alberto de Lima Rocco Junior, integrantes do atual governo, pouco puderam ajudar, já que têm acesso apenas aos documentos deixados pelos antecessores.
Se até esse ponto a CPI ainda não desatou nenhum nó do imbróglio dos R$ 29 milhões gastos com livros, serviu para revelar outra trapalhada com o dinheiro público na mesma secretaria e igualmente no último ano da administração municipal anterior. Dessa vez, o prejuízo foi de R$ 407.600,00. O pior, neste caso, é que nenhum serviço ou produto chegou à população.
A revelação foi feita pelo corregedor-geral, durante depoimento à CPI, na sexta-feira (25). Ele contou que a Sedu adquiriu em 2020 cerca de 2 mil assinaturas de uma enciclopédia digital, no valor de R$ 185,00 cada. A proposta era utilizá-los nas atividades educacionais à distância em plena pandemia de Covid-19. O absurdo é que as licenças venceram sem nunca serem usadas na rede municipal de ensino.
Além disso, conforme o atual chefe da pasta, não havia estrutura para que os alunos pudessem usufruir dos benefícios. Sequer as contas de e-mail necessárias para os usuários poderem se logar no sistema foram criadas. Vale destacar que em ambos os casos as aquisições foram efetuadas da mesma empresa, que, por sinal, é alvo de investigação da Polícia Federal por superfaturamento em prefeituras pernambucanas.
A despeito da motivação, a carência de planejamento em qualquer esfera de governo é uma perniciosidade à qual a sociedade não pode se dar ao luxo de continuar alimentando.
Lamentavelmente, as improvisações -- popularmente conhecidas como gambiarras -- continuam substituindo as estratégias de governo e gerando prejuízos que se fazem sentir de formas diversas, desde a supressão e/ou precarização de serviços até à dilapidação dos cofres públicos. Uma maneira de acabar a farra com o dinheiro público é a criminalização dos deslizes administrativos.