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Vestígios de jenipapo
A tribo está na região há alguns meses, e se desloca por conta da construção do Rodoanel. Crédito da foto: Divulgação
Ela se apresenta como Sabrina, mas esse não é o seu único nome. Seu olhar cabisbaixo reflete as incertezas de qualquer adolescente de treze anos, de menina que está se tornando mulher. Todos os dias ela vai à escola, em Tapiraí, interior de São Paulo, porque gosta das aulas de matemática. No futuro, sonha em cursar uma faculdade -- ainda que se lembrar do nome do curso, em português, possa às vezes ser difícil para quem está acostumada a falar tupi-guarani. O que ela quer mesmo é ser chefe de cozinha. “Na faculdade, eu gostaria de fazer ‘aquilo que faz comida’...”, diz, sem se lembrar do nome. “Ah, gastronomia... Eu quero fazer gastronomia!”
Sabrina é uma das indígenas da aldeia Gwyra Pepo, e os vestígios já apagados de sua pintura facial à base de jenipapo, negros como os cabelos e os olhos estreitos, entregam a sua origem. O seu outro nome, na língua nativa, ela recebeu do cacique -- assim como todos os membros da sua tribo --, mas esse ela prefere não dizer. “É Sabrina”, ela insiste, quando questionada a respeito da versão em tupi-guarani. As mãos se remexem, inquietas.
Atualmente a tribo da qual Sabrina faz parte está localizada na serra de Tapiraí, que faz parte da Região Metropolitana de Sorocaba, mas nem sempre foi assim. Até poucos meses atrás, a aldeia ficava às margens do Rodoanel. A Gwyra Pepo não foi a única aldeia a se mudar; segundo dados publicados no jornal Cruzeiro do Sul, em 2012, por meio da assessoria da Fundação Nacional do Índio (Funai), três aldeias próximas ao Rodoanel seriam transferidas para a região de Tapiraí. Sabrina chegou em junho de 2018, junto a outras 130 pessoas. Segundo a Funai, os indígenas se deslocaram por vontade própria e, devido aos impactos da construção do Rodoanel, a concessionária responsável pelas obras, a Dersa Desenvolvimento Rodoviário, ofereceu o dinheiro para a compra das novas terras, para a construção da aldeia.
“Nós preferimos aqui”, diz o cacique José Fernandes Soares, de 74 anos, com os olhos cansados e um cocar na cabeça que esconde os cabelos brancos. “É mais sossegado, pois a cidade fica mais longe da tribo. Aqui não precisamos nos preocupar, temos liberdade”. Ele conta que, em São Paulo, os moradores eram mais retraídos, eventualmente até mesmo agressivos. Num certo momento, a aldeia foi inclusive vandalizada. “O preconceito”, acrescenta o cacique, resignado, “é algo que nós vamos encontrar sempre.” Sabrina balança a cabeça, em concordância silenciosa.
O cacique é José Fernandes Soares, de 74 anos, e diz que a nova morada da tribo é um local mais sossegado. Crédito da foto: Divulgação
“No estado de São Paulo, nós temos 58 aldeias”, lembra William Karaipopygua, que, sendo mais jovem do que o cacique, assume a função de líder da Gwyra Pepo quando o assunto é administrativo ou burocrático. “O pessoal quase não conhece essas aldeias. Até mesmo nas grandes capitais as pessoas se perguntam ‘onde estão os índios? ’, e quando se fala em população indígena, imaginam pessoas vivendo lá na Amazônia, ou no Mato Grosso. Até as ilustrações que são colocadas em livros são de 400, 300 anos atrás. Mas não. Nós estamos aqui.”
A conversa é entrecortada pelo jogo do Palmeiras, que passa na TV da tenda de madeira que serve de centro comunitário. Uma construção precária sem portas, mas a única que tem televisão. As demais casas, com portas improvisadas pelos próprios membros da aldeia, são construídas com madeira e lona, o que os preocupa em caso de chuva e ventania. A “casa de reza”, que está em construção, deverá ser finalizada com materiais mais resistentes, que por enquanto ainda estão em falta.
Atualmente a aldeia conta com uma horta, onde os habitantes plantam batata doce e frutas para a própria alimentação.
Já a água é um problema, pois, para buscá-la, os indígenas devem percorrer uma longa trilha. O cacique afirma que pretendem construir um poço para facilitar o trabalho, já que no local onde moravam anteriormente, em São Paulo, eles tinham água dentro das próprias casas. Ainda assim, ninguém parece estar insatisfeito.
Beija-flor
Despreocupadas, as crianças cantam uma cantiga tradicional da aldeia enquanto os adultos conversam. O coro é uníssono: “Mainumbymirî’i, yvateguyogueyu, oyevyñanderendape, omombe’ umainumby, ñande y, omboi’ umainumby, yvype o pyta.” Sabrina explica que a música conta a história de um beija-flor, que desceu do céu para conhecer a terra. Encantado com a beleza da fauna e da flora, o pássaro retornou aos céus, pedindo então a permissão de Deus para descer com os demais beija-flores. Ela afirma que é por esse motivo que nós temos beija-flores no mundo.
Essa é uma das cantigas que eles costumam apresentar na escola, no bairro do Turvo, em Tapiraí. Em São Paulo, os membros da tribo tinham aulas na própria aldeia, em uma unidade estadual, logo essa é a primeira vez em que as crianças frequentam aulas numa escola que não é voltada unicamente aos estudantes indígenas. Além de aprender as matérias básicas, incluindo a própria língua portuguesa, Sabrina e as outras crianças da aldeia têm a oportunidade de compartilhar sua cultura com os demais, por meio de apresentações de canto e dança no idioma tupi-guarani.
“Eu gosto de estudar, tenho muitos amigos na escola. Quando levei os colares que faço para a aula de Artes, todos gostaram”, relembra Sabrina, enquanto mostra seus colares, produzidos com fios de silicone e sementes. Ela os expõe do lado de fora de sua casa. Além disso, confecciona pulseiras de contas e pequenas flechas, com penas artificiais coloridas, que também leva para a escola.
Tapiraí oferece estrutura para a tribo
Peças de artesanatos são produzidas por membros da tribo. Crédito da foto: Divulgação
Segundo a Secretaria de Desenvolvimento Social de Tapiraí, a Prefeitura oferece educação a mais de 30 crianças indígenas em escolas públicas da cidade. O ônibus municipal passa pelo Bairro Rio Bonito, onde fica a aldeia, para buscar as crianças e levá-las até a escola. O município também realiza ações voltadas à saúde dessa população, em parceria com a Secretaria de Saúde Indígena (Sesai) de Miracatu. Segundo a secretaria, médicos e enfermeiras realizam atendimentos na aldeia, com as vacinas e medicações necessárias.
Além disso, carteiras de identidade (RG), certidões de nascimento e documentos foram providenciados para as famílias da aldeia. A Prefeitura ainda afirma que conduz visitas semanais, para providenciar qualquer item de necessidade iminente. Para maior comodidade, energia elétrica também foi instalada no local.
A Funai afirma que, como a mudança é recente, não há por enquanto um atendimento escolar diferenciado, mas que pretende providenciar esse atendimento específico, para que as crianças possam estudar a língua materna e seguir um calendário próprio. Dependendo das necessidades, deve haver inclusive prioridade para professores indígenas. A fundação ressalta que os indígenas têm os mesmos direitos de quaisquer outros cidadãos.
Trabalho assistencial mobiliza vizinhos
Elementos da cultura indígena reforçam valorização da tribo. Crédito da foto: Divulgação
O bombeiro e policial aposentado Antonio Benedito Amorim, residente da região, conta que conheceu a aldeia através de uma amiga, que é advogada em Sorocaba, e pediu o auxílio dele numa certa ocasião. Ele é uma das pessoas que, devido às necessidades da Gwyra Pepo, se mobilizou para ajudar os seus membros levando-lhes periodicamente alimentos, roupas e água. Ele conta que já realizou mais de dez viagens até o local, com o carro carregado de suprimentos.
“Já arrecadamos mais de uma tonelada. Nós sempre vamos para lá, pois moramos num sítio na serra, próximo ao local. Eu fui bombeiro durante 27 anos, então já gostava de ajudar. Hoje nosso sítio é uma espécie de base comunitária, que nós cedemos para atendimentos médicos”, diz.
Junto à esposa, ele pretende ainda realizar um projeto de saneamento, a pedido de William. O saneamento deveria ser uma responsabilidade do poder público, mas como o projeto ainda não saiu do papel, Antonio está dando uma mãozinha ao jovem líder.
Além dos mantimentos e itens de higiene pessoal que o ex-bombeiro arrecada, também está em seu planejamento a distribuição de brinquedos e guloseimas em datas comemorativas. Mas se depender de Sabrina, as festas precisam de mais do que cachorro-quente e pipoca: “Quando vierem novamente, eu vou fazer beiju,” promete. Refere-se ao prato de origem indígena, feito com tapioca, que costuma cozinhar para os irmãos. (Por Giovana Becegato, Nicole Annunciato e Talissa Medeiros - alunas do 3º período de Jornalismo - Uniso)
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