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O beijo falso e o tapa sincero

Artigo escrito por Leandro Karnal

04 de Julho de 2021 às 00:01
(Crédito: REPRODUÇÃO / INTERNET)

Você já deve ter ouvido que é melhor um tapa sincero do que um beijo falso. Há variantes da ideia: é mais fácil lidar com um inimigo declarado do que ter um falso amigo. A referência bíblica é o beijo de Judas, símbolo máximo da traição. Três evangelhos o descrevem (Mateus, Marcos e Lucas). João fala do encontro, todavia omite o beijo. Os dois primeiros evangelistas usam um termo grego forte e afetivo para o ato: kataphilein.

O traidor foi motivado pelas 30 moedas? Teria se decepcionado com Jesus porque o Mestre se recusava a uma revolução armada contra os romanos? Judas seria, na verdade, um militante zelote, grupo radical? Seria o arquétipo de traidor um mero executor do plano divino que já continha a morte do Messias? A questão central é que uma deslealdade implica afeto prévio. Por algum motivo, quem trai pode ser sincero quebrando o propósito anterior. O perjuro poderia ser fiel a alguém antes do ato e permanecer fiel, agora, em nova situação. Incômodo indagar: fiel a quem?

A idade costuma trazer a lição da impermanência. Quem já te amou ontem pode te odiar hoje. Todas as pessoas do mundo já deixaram de cumprir promessas, inclusive eu e você. Votos feitos a si ou a outra pessoa, desejos piedosos que, diante do real cotidiano, foram desgastados. A vida já nos obrigou a cumprimentar com a mão ou com um beijo pessoas que detestamos. Judas recebeu um saco de prata. Faríamos de graça (e até pagando do nosso bolso) a entrega de um desafeto à Justiça, se pudéssemos? Raramente nos conhecemos e nem sempre podemos ser livres nos jogos sociais.

O que ocorreria se disséssemos tudo o que pensamos aos outros? Que família, que escritório, que amizade sobreviveria a tantos “tapas sinceros”? A frase mais citada de João (conhecereis a verdade e a verdade vos libertará) costuma esconder um detalhe importante: o custo. Seria como dizer: subireis naquela montanha elevadíssima e a vista será estonteante. Sim! Porém, para estar lá, todos os pedágios da sua resiliência serão acionados. E ainda haverá o custo da descida! A verdade liberta ao custo de toda a prata do mundo, e do ouro, e da paciência, e do choro, e da dor...

Todo julgador de teses em banca já viveu a experiência. O trabalho é muito ruim. Não é desonesto. Não existe plágio, algo que justificaria uma reprovação veemente. Nem sequer chega a pretensioso. É, apenas... ruim. O pesquisador fez um enorme esforço, deu o máximo da sua capacidade escassa. Por qual régua deve ser julgado? Você, na confortável situação de julgador empoderado, deve distribuir tapas sinceros? Deve ostentar uma falsa simpatia? Deve usar a lente paternal/maternal que, recebendo o cartão medonho do filho, rabiscado de forma irregular e sem energia criativa, foi o máximo que aquela criança, no seu limite alto e no seu afeto claro, conseguiu? Que homem, que mulher diria ao seu rebento: “Filho, sua capacidade ainda é limitada. Faça cursos de desenho e de composição artística e só me dê novos cartões quando seu conhecimento e técnica forem capazes de produzir algo significativo. Até lá, não desperdice material e tempo”. Um pesquisador profissional não é uma criança amorosa, porém o paralelo vale. A tese seria fruto de muita gente incentivando sem senso crítico? Faltaram tapas naquela trajetória que conduziu a este dia complexo?

Entre tapas e beijos, eu, meu homônimo falecido e o irmão Leonardo vamos levando a vida. Bofetadas sinceras podem enfraquecer a vaidade que tanto atrapalha nosso progresso. Existe uma medida entre a crítica e o elogio? Trai mais Judas que beija de forma solerte e entrega Jesus ou Mateus, que não vendeu o Messias, não beijou porém... nada fez para deter soldados ou sequer foi até a cruz? O Iscariotes beijou, Pedro negou de forma tripla e dez ficaram olhando. Você, querida mãe, teria mais raiva de um psicopata que colocasse espinhos na cabeça do seu filho ou do seu marido que estava do lado da cena e nada fez?

Volto à banca. Como medir a subjetividade? O trabalho não estava bom porque... eu já li trabalhos excelentes nas melhores universidades. Para aquela instituição, porém, a pesquisa está acima da média. Qual o tapa mais pedagógico e qual o beijo menos infiel? Reprovar vai melhorar o mundo acadêmico? Não existe nenhuma desonestidade no texto, apenas o pesquisador tem poucos recursos intelectuais. Deveria só aprovar trabalhos brilhantes? O meu teria sido aprovado com tal exigência? Tive um colega chileno na universidade que pegava o trabalho e dizia: “Está uma porcaria”. Era famoso pelos rompantes de tapas sinceros. Mas ele sempre lia e suas críticas eram muito claras. Era sincero, direto, negociava pouco com o mundo e dizia coisas de forma explícita. Nunca foi muito diplomático, pelo menos na época em que diplomacia era sinônimo de cordialidade e equilíbrio. Mais gente como ele faria crescer o nível intelectual ou aumentar os suicídios? Uma coisa excluiria a outra?

Como você vê, querida leitora e estimado leitor, tenho muitas perguntas e poucas respostas. Já dei tapas sinceros e tasquei beijos falsos. Viver é administrar as duas coisas. Uma grande semana para todos nós, sinceros beijadores e controlados estapeadores.

Leandro Karnal é historiador, escritor e membro da Academia Paulista de Letras.