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Vanderlei Testa

‘Já volto, rainha’

Um amor contido na confiança e apoio, que dava ao Desidério a liberdade para trabalhar em transmissões esportivas e jornalísticas no Brasil e exterior

30 de Agosto de 2022 às 00:01
Cruzeiro do Sul [email protected]
(Crédito: ARTE: VT)

 

O garoto José Desidério nasceu em Conchas, cidade distante 115 quilômetros de Sorocaba. Os seus pais foram os seus ídolos em testemunho de amor. Desidério entregava marmitas, ajudava em lavanderia, engraxava sapatos, fazia um pouco de tudo, como um filho responsável. Apesar da pouca idade, era fascinado por futebol. Até quando ia ao açougue, buscar a carne que a mãe tinha encomendado, percorria o caminho transmitindo mentalmente uma partida imaginária. Em 5 de janeiro de 1962, chorou com a partida da mãe ao céu. Estava na terceira série do ginasial. A maior decisão de sua vida para realizar o sonho de ser radialista e transmitir jogos em alguma rádio de São Paulo, o motivou, em 1º de julho de 1962, a pegar o trem. O menino “Tilico”, com a sua mala e cheio de ilusões, parou na estação de Sorocaba. O destino mudaria o trajeto do bilhete comprado para chegar à estação Júlio Prestes, da Capital. Tímido, e com o coração pulsando de ansiedade, foi até a casa de um parente, para dormir em Sorocaba. Foi recebido com carinho e contou da sua parada na cidade para procurar emprego em emissora de São Paulo que o atraiu a esta aventura.

Motivado pelo cunhado do seu irmão a visitar as três rádios de Sorocaba, Vanguarda, Cacique e rádio Clube, às 10 horas do dia 2 de julho, Desidério dava início a uma história que já tem 60 anos à frente aos microfones. O locutor Ferraz Filho foi o seu padrinho, conduzindo ao primeiro emprego na emissora Vanguarda. Depois de um teste de entrevista com o técnico do time do Estrada Futebol Clube e sucesso nas suas transmissões aos ouvintes, foi contratado no dia seguinte, em 3 de julho de 1962.

Conheço o José Desidério desde os anos 70. Já fui entrevistado por ele inúmeras vezes. Sou um de seus admiradores como profissional dos mais respeitados no rádio sorocabano. Desidério é um amigo considerado como pérola preciosa. Humilde, sem apegos ou vaidades, ele foi casado com a “dona Mercedes”, como ele gostava de expressar à sua amada companheira. Na porta da geladeira, até hoje está um bilhete com os dizeres: “Já volto, rainha”. Essa frase, contém o respeito conjugal que existiu até o falecimento da esposa Mercedes. Um amor contido na confiança e apoio, que dava ao Desidério a liberdade para trabalhar em transmissões esportivas e jornalísticas no Brasil e exterior.

A casa do casal, no jardim Prestes de Barros, tem preciosidades que o Desidério vem guardando em décadas de colecionador. Mais de mil peças de decoração de Natal, brinquedos, álbum de figurinhas, pastas encadernadas com recortes de jornais, microfones e até um carro Chevette adquirido zero quilômetro com poucos quilômetros rodados em mais de 20 anos.

Desidério, diz aos amigos que tudo o que está incorporado ao seu coração como história da sua vida, está preservado. Em suas orações diárias, faz questão de agradecer às amizades e à família. A palavra gratidão é o seu mantra 24 horas por dia. Homem de fé, ele diz que escolheria duas pessoas que já partiram para retornarem a este planeta -- Jesus e a sua mãe.

O autógrafo do Pelé é uma das lembranças que guarda a sete chaves. Aconteceu de forma inusitada em um jogo do time do Santos FC, quando o Desidério conseguiu entrevistá-lo no campo do São Bento. Como não tinha papel disponível nas mãos para obter o autógrafo do melhor jogador do Brasil, Desidério, lembrou-se que tinha a carteira profissional no bolso. Não perdeu tempo. Enfiou a mão no bolso da calça e entregou ao Pelé, que em uma das páginas do documento, escreveu: “Ao meu amigo José, com carinho, Edson Pelé”.

Sobre desistir do rádio, José Desidério conta que nunca pensou nisso, porque a sua vida é o rádio. Para se sustentar no começo da vida no rádio, trabalhava no terceiro turno da fábrica de tecidos da Estamparia. Já trabalhou na rádio Cultura, CBN, Gazeta e em muitas outras, como locutor esportivo. Uma curiosidade, é que o Desidério não participa de entrevistas coletivas. O motivo é o respeito aos colegas de rádio que fazem a pergunta e ele nunca aproveita o trabalho dos outros para si. Também não edita as suas entrevistas. Ele considera uma arte as falas dos entrevistados.

A sua trajetória no rádio, contada no vídeo memória dos “100 anos de rádio no Brasil” produzido pela Universidade de Sorocaba, é um documentário que emociona e perpétua o caráter e profissionalismo do menino de Conchas.

Vanderlei Testa ([email protected]) é jornalista e publicitário. Escreve às terças-feiras no jornal Cruzeiro do Sul