Nildo Benedetti
Filmes da Netflix: ‘Um marido fiel’ (parte 2 de 5)

Sugiro ao leitor que leia este e os próximos artigos procurando ajustá-lo aos relacionamentos afetivos do filme. Perceberá que todos os acontecimentos imaginados pelo comissário de polícia fazem sentido.
Falemos, portanto, de amor. Provavelmente não há palavra mais difícil de definir do que “amor” no sentido de afeto nas relações entre namorados, amantes etc. Já citei nesta coluna a belíssima passagem do drama Salomé, de Oscar Wilde, em que a protagonista pronuncia à cabeça decapitada de São João Batista: “O mistério do amor é maior que o mistério da morte”; e, após beijar a boca do santo, diz: “Seus lábios tinham gosto amargo. Seria o sabor do sangue? Mas talvez fosse o gosto do amor. Dizem que o amor tem um gosto amargo”.
Por sua universalidade, o tema do amor é amplamente tratado nas artes. Muitos filmes tratam o amor de forma simplória, esquemática, idealizada, romanceada, omitindo o que acontece alguns anos depois daquela troca de beijo apaixonada que se vê em filmes de final feliz. O interesse que o sentimento amoroso desperta no público é o que garante a audiência exigida pela atividade comercial da indústria cinematográfica. Mas alguns filmes tratam do assunto com grande profundidade - é o caso deste“Um marido fiel- e abordam com talento variedade de sentimentos em jogo nas relações afetivas, seus paradoxos, suas ambiguidades, a dificuldade de compreendê-lo, sua irracionalidade e, ao mesmo tempo, nossa tentativa frustrada de racionalizá-lo; mostram as alegrias do sentimento amoroso, mas também seus tormentos: decepções que inevitavelmente seguem os primeiros êxtases da paixão, infidelidade, tédio, ciúme, queda do desejo sexual, separação, maus-tratos, dificuldade em encontrar o parceiro ou parceira certos.
Para continuar a escrever sobre amor, citarei, de forma muito simplificada, alguns conceitos da Psicanálise.
“Ego” (ou “Eu”) é um termo empregado na filosofia para designar a pessoa humana como consciente de si. Mas Freud demonstrou que o ego é, em grande parte, inconsciente.
“Ideal do Ego” são objetivos, aspirações, valores etc., que o Ego gostaria de alcançar. Ou uma pessoa tomada como exemplar a quem o Ego gostaria de se assemelhar.
“Narcisismo” significa o amor de um indivíduo por si mesmo.
Esses conceitos nos ajudarão a entender muitas formas de escolha amorosa. Ocorre quando o ser amado serve de substituto de algum ideal inatingido do nosso ego. Nós o amamos por causa das perfeições que nos esforçamos por conseguir para satisfação do nosso próprio ego e, dessa maneira indireta, satisfazer nosso narcisismo. Isso significa que algumas vezes escolhemos os parceiros de acordo com o que gostaríamos de ser. A pessoa que ama nessa condição narcisista vê o objeto de seu amor como sendo o seu próprio ego. E essa idealização falsifica o julgamento acerca da pessoa amada. Ela é amada não pelo que é, mas pela fantasia que criamos a seu respeito. O amor narcisista é um engano, uma ilusão, e explica o que ocorre com o tempo nas relações amorosas: a fantasia que nos faz idealizar o ente pelo qual nos apaixonamos vai sendo desmontada com o tempo e o contato com a realidade transforma o jogo da sedução e o arrebatador amor inicial em uma relação sem amor, frequentemente de desilusão, amargura, mentiras, ciúme, traição, indiferença e até de ódio contínuo.
Esta série de artigos está incluída no projeto Cine Reflexão da Fundec