Nildo Benedetti
Minissérie da Netflix: ‘Corpo em chamas’ (parte 7 de 10)

Caro leitor, retomo a análise desta minissérie, depois de uma interrupção de duas semanas em que tratei do atualíssimo tema da guerra na Europa.
Rosa e Carmen
O conto Carmen, que o francês Prosper Mérimée escreveu em 1845, transcorre em Andaluzia, na Espanha, e narra a história de um membro do regimento dos Dragões, Don José, que, movido pela paixão por uma cigana, a livre e sedutora Carmen, vai se degradando moralmente e termina por matá-la.
O conto teve muitas adaptações para o cinema, dança e teatro e o compositor francês Georges Bizet compôs a ópera “Carmen” com base no conto.
A personagem Carmen pode ser observada de várias perspectivas, mas o que a faz atraente e singular é seu caráter incomum e impossível de ser determinado com precisão. Ela é transgressora incorrigível das leis e das regras da moral sexual do século 19 e também pode ser tomada como portadora do desejo de destruição dos parceiros, como a fêmea do louva-a deus, sobre a qual escrevi nas partes 4 e 5 desta série de artigos.
Outra razão para o interesse de adaptações do conto está relacionada à figura de Don José. Sua história é universal e atemporal e coloca em evidência a natureza da paixão, esse sentimento inexplicável, mais poderoso que o sexo, embora o inclua. Existem muitas histórias de pessoas que, como Don José, matam porque são rejeitadas pelo objeto da paixão, mas poucos são os casos, se existirem, de assassinatos de parceira afetiva motivados pela recusa sexual pura e simples. Embora Carmen forneça constantes sinais do risco que representa para Don José, este, refratário a qualquer alerta de perigo, avalia-a segundo a cegueira da paixão, que só vê o que quer ver; ou seja, descarta as informações que possam motivar afastamento e põe foco nas que confirmem a aproximação. Tanto Don José quanto Carmen estão aprisionados pela paixão: ele aprisionado a ela, e ela pela liberdade. Ficam, assim, impedidos de construir uma relação produtiva para ambos.
O caso de Rosa e Albert tem elementos comuns ao de Carmen e Don José: as duas mulheres usufruem uma liberdade sexual sem qualquer acanhamento moral e ambas têm a capacidade de sedução que destroem os homens que as rodeiam. Albert tem em comum com Don José o fato de se aproximar da perigosa Rosa. Albert tem uma relação duradoura com outra mulher, assim como na ópera de Bizet, Don José tem uma namorada virtuosa e afetiva. Ambos escolhem a mulher errada a quem se ligar.
Não sabemos por que Rosa e Albert mataram Pedro. Poderíamos arriscar algumas possibilidades, mas podemos afastar, de início, que o crime tenha sido cometido para afastar Pedro para que Rosa e Albert pudessem viver livremente seu romance. De fato, Rosa é compulsivamente infiel ao marido e aos namorados de ocasião. O assassinato de Pedro não teria nada a ver com a tentativa de se livrar de um namorado incômodo. É isto que a advogada de Rosa sustenta: “Por que mataria o parceiro? Por favor, estamos no século 21. Se Rosa quisesse se separar do Pedro, teria feito isso”. De fato, para ela nunca foi problema construir relações amorosas. O que ocorre é exatamente o contrário.
Penso que a mais plausível motivação para o crime estaria relacionada à guarda da filha de Rosa, Sofia.
Esta série de artigos está incluída no projeto Cine Reflexão da Fundec