Educação
Currículo voltado à educação midiática está disponível gratuitamente
Um projeto grande que envolveu pesquisadores de 29 países
Desde a primeira geração da internet comercial, nos anos 1990, até a emergência de fenômenos mais contemporâneos, como as mídias sociais, vem acontecendo uma reconfiguração gradativa na dinâmica dos fluxos de informação: quem comunica o que para quem, ou está autorizado a comunicar. Enquanto no passado havia poucos agentes sociais que detinham autorização institucional para se comunicar às massas (como os jornalistas, por exemplo, que contavam com a chancela da grande imprensa), hoje o potencial para tal está disponível a todos que dispuserem de um smartphone e de acesso à internet. Por um lado, essa reconfiguração representa uma profunda democratização dos fluxos de informação; por outro, ela culmina também em fluxos mais caóticos, por meio dos quais pode ser difícil se guiar, já que neles opera uma cacofonia de discursos, tanto especializados quanto não especializados.
E, se esse já era um desafio antes mesmo da pandemia de Covid-19, a situação só se tornou mais urgente depois que entraram em vigor as medidas de distanciamento social, uma vez que muitas esferas da vida em comunidade que ainda aconteciam fora da internet tiveram de ser transpostas às pressas para espaços virtuais, o que, consequentemente, tornou os fluxos ainda mais caóticos. O contexto, naturalmente, pode ser estudado a partir de múltiplos pontos de vista: por pesquisadores da Educação e da Comunicação Social, por exemplo — e isso pode ser feito isoladamente —, ou, como aconteceu na primeira edição do Simpósio da Alfamed Brasil sobre Competências Midiáticas (SICOM), por ambos em conjunto.
“Todos nós vivemos a migração para o virtual. E, na emergência da pandemia, todos nós estávamos procurando alternativas: aulas e reuniões que seriam presenciais passaram a ser remotas; fez-se necessária uma reconfiguração não só dos usos da mídia, mas da nossa própria vida privada. Nesse contexto, nós percebemos que as mídias passaram a ser muito mais utilizadas para fins educacionais do que eram até então. E um dos primeiros pontos que nós, pesquisadores, observamos foi que muitos professores, naqueles momentos iniciais da pandemia, buscaram aparatos ou pelo menos algum tipo de guia que os preparassem para trabalhar no contexto dessas mídias.” O relato é da professora doutora Vanessa Matos dos Santos, da Universidade Federal de Uberlândia, e foi compartilhado durante sua fala como pesquisadora convidada no evento.
Santos conta que, quando veio a pandemia, ela estava justamente na Espanha, para uma pesquisa sobre educação midiática e, ao perceber essa necessidade pela qual os professores de todo o mundo estavam passando, ela começou a buscar, junto a outros pesquisadores nas áreas da Comunicação e da Educação, materiais especializados que estivessem disponíveis para suprir essa lacuna. “O que nós localizamos de pronto foi o ‘Guia de Alfabetização Midiática e Informacional da Unesco’ (a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, que é uma agência da ONU)”, ela relembra. Tratava-se de um bom material, mas que, por ter sido publicado já há quase uma década, encontrava-se desatualizado. Assim, como parte da Alfamed — a Rede Euro-Americana de Pesquisa em Competências de Mídia para a Cidadania —, ela foi uma das pesquisadoras que se propôs a atualizar o guia da Unesco.
Foi um projeto grande, que envolveu pesquisadores voluntários de 29 países, e que teve como objetivo original adaptar o guia que já existia. “Porém” ela diz, “no decorrer do caminho, e sobretudo em função da dinâmica de trabalho que foi adotada, o que nós percebemos é que o nosso produto final não seria uma revisão ou uma atualização do guia da Unesco, mas na verdade um documento totalmente novo.” O resultado, publicado em 2021, foi um livro intitulado “Currículo Alfamed de formação de professores em educação midiática: Alfabetização Midiática e Informacional na era pós-Covid-19”, disponibilizado gratuitamente em português pela editora do Instituto Palavra Aberta — organização sem fins lucrativos que defende a liberdade de expressão e práticas voltadas à educação midiática. O material é dirigido a professores de todos os níveis e está dividido em 32 unidades letivas, cada uma delas com conceituação teórica, referências e atividades didáticas, além de sugestões de avaliação, num percurso planejado para ocupar duas horas de trabalho por unidade. A ideia é que o currículo esteja pronto para ser aplicado por professores brasileiros, seja de forma completa, na mesma sequência em que as unidades letivas estão propostas, ou em partes, a critério de cada docente e das especificidades de cada contexto. “No caso da versão em língua portuguesa, nós tivemos ainda a preocupação de não apenas traduzir o material do original em espanhol, mas de adaptá-lo, propondo exercícios e conceitos mais próximos à nossa realidade”, acrescenta Santos, defendendo o currículo como um esforço para sedimentar uma formação de docentes para a educação midiática no Brasil.
Avanços em relação ao guia da Unesco
Um dos principais pontos que justificam a publicação do currículo da Alfamed, quando comparado ao antigo guia da Unesco, é a emergência de uma nova cultura digital no intervalo de dez anos entre 2011 e 2021. Gradativamente, ao longo desse período, as mídias online estiveram cada vez mais disponíveis às comunidades como um todo, e não só a estratos privilegiados da sociedade. Além disso, houve também a emergência dos “prossumidores”, como é chamada essa nova classe de usuários que não só consomem determinados conteúdos, mas também produzem e divulgam os seus próprios.
A conclusão, apresentada no VI Congresso da Alfamed, em Arequipa, no Peru, é de duas pesquisadoras da Uniso, Cristiane Sales Pires e Cristiane Bevilaqua Mota, ambas estudantes de doutorado no Programa de Pós-Graduação em Educação da Uniso. Num artigo disponibilizado nos anais do evento, elas analisaram o currículo da Alfamed com base em critérios próprios para a análise de livros didáticos, destacando o fato de o currículo ter incluído em sua redação final temas contemporâneos como a geração mais recente da web (ou web 3.0), a linguagem dos novos meios digitais, os diferentes gêneros de influenciadores presentes nas mídias sociais, novos formatos publicitários, o fenômeno das fake news, privacidade e cidadania digital, entre outros. Acesse os anais do evento (o artigo está disponível a partir da p. 605)
Necessidade urgente
Conforme definem o professor doutor Ismar de Oliveira Soares, da Universidade de São Paulo (USP), e Patrícia Blanco, presidente do Instituto Palavra Aberta, num texto introdutório publicado como parte do próprio currículo, a educação midiática (ou ainda alfabetização midiática e informacional) pode ser definida como “o conjunto de habilidades para acessar, analisar, criar e participar de maneira crítica do ambiente informacional e midiático em todos os seus formatos”.
“Levar esse tema tão fundamental para a sala de aula passa a ser, hoje, o caminho mais seguro para garantir que os jovens desenvolvam as habilidades necessárias para navegar com segurança pelo mar de informações com que somos bombardeados a todo minuto”, defendem os autores, argumentando que o problema não está (somente) nas mídias em si, mas especialmente no uso imprudente que a sociedade faz dessas mídias, estando assim suscetível a “uma infinidade de conteúdos de procedências duvidosas e disseminados com intenções camufladas, que dificultam, até mesmo, o entendimento de questões simples e corriqueiras.”
Para a professora doutora Maria Alzira de Almeida Pimenta, do PPGE, que está à frente das iniciativas relacionadas à Alfamed no âmbito da Uniso, o currículo cumpre a função à qual se propõe e, utilizando-o como base, os professores podem, inclusive, trabalhar outra importante dimensão que compõe o conceito de competência midiática: as atitudes. “Atitudes podem ser compreendidas como valores”, ela explica. “Valores orientam a prática, eles são aquilo que dá sentido às ações e às escolhas, e, hoje, eles são a parte mais frágil da nossa educação. Entendo que, se os professores estiverem atentos a isso, o currículo Alfamed também pode contribuir, de forma complementar, para que essa dimensão seja trabalhada na educação escolar quando o assunto é a nossa relação com as mídias.”
Além desse aspecto moral, por assim dizer, de contribuir para uma sociedade mais apta a ler e interagir criticamente com as mídias, existe, especialmente no caso brasileiro, uma outra razão instrumental que torna a educação midiática urgente: o fato de a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) — que é o documento normativo que define quais são as aprendizagens essenciais a serem desenvolvidas na Educação Básica — incluir questões relacionadas às tecnologias de comunicação e aos diferentes tipos de letramento que elas suscitam, o que reforça a importância de novos materiais didáticos, mais atualizados, sobre o assunto.
De acordo com os professores doutores Rafael Ângelo Bunhi Pinto, coordenador do PPGE, e Maria Ogécia Drigo, coordenadora do PPGCC, ambos membros da comissão organizadora do SICOM, faz-se imperativo, justamente pela natureza interdisciplinar desse tipo de material, que o debate decorrente aconteça de forma articulada por pesquisadores de ambas as áreas, tanto da Educação quanto da Comunicação (justamente a proposta do SICOM), e que esse debate esteja amplamente acessível à comunidade que pode vir a se beneficiar dele. Além disso, eles ressaltam a importância de fazê-lo de forma crítica e alinhada às pesquisas que estão sendo desenvolvidas internacionalmente, visto que essas questões estão longe de ser uma preocupação localizada.
Faça download da publicação gratuitamente (em português).
O primeiro Simpósio da Alfamed Brasil sobre Competências Midiáticas
O simpósio, realizado de forma integrada por dois dos Programas de Pós-Graduação da Universidade de Sorocaba (Uniso), o Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) e o Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura (PPGCC), aconteceu em novembro de 2022 e contou com a participação de pesquisadores nacionais e internacionais, os quais apresentaram, em dois dias de evento, os resultados de seus estudos envolvendo educação e competências midiáticas — ou, em outras palavras, a capacidade de um usuário para combinar conhecimentos, habilidades e atitudes de modo a não só acessar as mídias e consumir determinados conteúdos, mas interagir com essas mídias de maneira crítica, inclusive para produzir e difundir os seus próprios conteúdos originais. A realização do evento fez parte de um processo de internacionalização que ambos os programas estão fomentando conjuntamente, principalmente por meio de seus grupos de pesquisa, dos quais vários membros fazem parte do braço internacional da Rede Euro-Americana de Pesquisa em Competências de Mídia para a Cidadania (Alfamed).
Siga os links para conferir os registros dos dois dias de evento:
Dia 1
Dia 2
Texto: Guilherme Profeta