Angélica Caniello
Quando desistir é uma grande vitória
Nesta sociedade (...) "do rendimento", a pessoa trava batalhas diárias consigo mesma e a competição não tem como objetivo superar o adversário, mas superar a si mesmo
Angélica Caniello
Nas Olimpíadas de Tóquio, assistimos a uma das maiores estrelas da ginástica artística, a norte-americana Simone Biles, abandonar a competição na qual era a favorita. Em um ambiente em que se exige que os atletas deem o máximo de si e onde desistir pode ser interpretado como um ato de covardia, a atitude de Biles gerou muitos debates.
A ginasta assim se justificou perante a imprensa: “Sou mais do que minhas realizações”. Isso significa que ela se considera mais do que as medalhas de ouro que acumulou, mais do que as marcas que endossa, mais do que o que se espera de uma atleta de alto rendimento.
Esse episódio trouxe à tona um debate muito necessário no esporte e fora dele. Para nos ajudar com algumas reflexões sobre o ocorrido e sobre como dele podemos colher algum aprendizado, recorreremos a um filósofo sul coreano chamado Byung-Chul Han.
Em sua obra intitulada “Topologia da Violência”, que foi escrita dez anos antes dessa decisão de Biles, o teórico nos auxilia a entender os conflitos vivenciados pelo indivíduo na sociedade contemporânea. Ele detectou uma instabilidade psíquica na nossa sociedade mediante a proliferação de males como vício em drogas, obesidade e depressão.
Han é um severo crítico da sociedade neoliberal e suas ideias transparecem em outros livros como “A Sociedade do Cansaço”, “Psicopolítica” e “A Expulsão do Diferente”.
Coerente com o que prega, o intelectual exerce, de forma inusitada, uma resistência individual à hiperconectividade à qual somos todos submetidos no nosso dia a dia: ele não tem celular, em casa só escuta música analógica e, como hobby cultiva, pacientemente, um jardim.
O sistema capitalista, para Han, integra uma forma de dominação que induz o sujeito a acreditar na positividade da exploração pelo trabalho. O filósofo chama esse fenômeno de “violência da positividade”, que é caracterizada por excesso de atividade (hiperatividade) e uma aparente liberdade, mas que esconde uma dissimulada coação interna.
Por não existir um inimigo externo, nessa concepção da violência o sujeito explora a si mesmo até desabar, autogerando, por vezes, uma violência que se manifesta em doenças como depressão e a Síndrome de Burnout, que é um distúrbio emocional com sintomas de estresse e esgotamento físico resultante de situações de trabalho desgastantes.
Nesta sociedade que Han denomina como sociedade “do rendimento”, a pessoa trava batalhas diárias consigo mesma e a competição não tem como objetivo superar o adversário, mas superar a si mesmo.
Simone Biles se deu conta de que a sua saúde mental e bem-estar emocional estavam sendo comprometidos pelo fardo de lutos e restrições associados à pandemia, além da exigência de se manter como a primeira no ranking das ginastas. Uma competição árdua consigo mesma, agravada por denúncias de ter sofrido assédio de um dos seus treinadores.
Muitos eventos traumáticos que foram se acumulando e sobrecarregaram a atleta até o momento em que não suportou tanto peso e desabou. Com muita lucidez, decidiu que não valia a pena continuar desse jeito. Uma decisão corajosa que pode servir de inspiração para todos nós.
Talvez devamos seguir também o exemplo de Han e cultivar, sem pressa, um jardim nosso.
Angélica Caniello ([email protected]) é professora da Uniso