Arte e Tecnologia
Inteligência Artificial: pode a tecnologia redefinir os limites da arte?
A obra de arte é algo que encarna um significado e é fruto de uma concepção mental de seu autor
A série de ilustrações escolhida para esta reportagem retrata a jornada de um astronauta, desde uma praia onde aparentemente ocorreu um acidente — a queda da nave que o levou até ali, talvez? —, e ao longo do caminho por um mundo novo, até chegar às potencialidades de uma metrópole futurista no limite do desconhecido. As “pinceladas” que compõem as ilustrações foram concebidas de modo a emular os contornos imprecisos do impressionismo (movimento surgido na França no fim do século XIX, que rompia com a tradição realista de movimentos artísticos anteriores), porém, neste caso específico, elas não foram feitas por mãos humanas. Em vez disso — e até alguns meses atrás, essa poderia ser uma revelação surpreendente para muita gente, embora não mais o seja —, cada uma das ilustrações foi criada com o auxílio de uma ferramenta de Inteligência Artificial (I. A.).
Para o imaginário popular, as discussões sobre I. A. parecem estar mais próximas dos campos compreendidos pelas Ciências Exatas do que pelas Artes. É fácil imaginar um robô numa linha de montagem completamente automatizada, por exemplo, ou um veículo inteligente tomando decisões sem a intervenção de um motorista humano, mas quantas pessoas pensariam, pouco tempo atrás, numa I. A. fazendo arte?
Talvez essa percepção explique minimamente a razão por trás da polêmica quando, em 2022, um artista amador chamado Jason M. Allen venceu um concurso de artes da Feira Estadual do Colorado (Colorado State Fair), nos Estados Unidos, com uma pintura digital produzida com o auxílio de uma ferramenta baseada em I. A., chamada Midjourney.
A exemplo de muitas outras ferramentas disponíveis online (que estão se multiplicando vertiginosamente desde o último ano, gratuitamente ou não), essa também é capaz de transformar comandos de texto em imagens de forma automática, ou seja, sem que um ser humano precise se dar ao trabalho de pintar suas ideias. De acordo com uma reportagem publicada pelo jornal estadunidense The New York Times, muitos artistas ficaram descontentes com o resultado do prêmio concedido a Allen em 2022, questionando se a escolha teria sido ética ou não, ou mesmo duvidando do valor artístico de uma peça criada por meio de I. A., como foi o caso do trabalho de Allen. Posteriormente, em 2023, outras polêmicas surgiram quando, nas mídias sociais, espalharam-se supostas “fotografias” do papa Francisco e do ex-presidente estadunidense Donald Trump, também criadas por meio do gerador de imagens Midjourney.
Deixando de lado as implicações éticas de se gerar imagens ultrarrealistas de pessoas de carne e osso (que possam ser confundidas com fotografias reais) e focando especificamente no mérito artístico de tais ferramentas, há duas questões que vêm à tona: o que faz com que determinada obra seja considerada verdadeiramente artística, e a quem recai a autoridade de traçar esses limites? Segundo a professora mestra Mirella Amalia Mostoni, do curso de graduação em Artes Visuais da Uniso, são vários os elementos relevantes para essa definição. “Muitas vezes”, ela diz, “o que torna algo passível de ser chamado de arte é o seu ‘autor’ (palavra que uso entre aspas, pois o seu sentido se modificou muito nas últimas décadas) e o contexto que o envolve. Algo pode se tornar arte em virtude das relações desse contexto e, inversamente, deixar de sê-lo. Vários elementos — o autor, o processo, o resultado, o efeito sobre o público — fazem parte do contexto que elege os objetos artísticos num dado meio e numa dada época, mas, pensando a partir da modernidade, eu acrescentaria a eles a chancela institucional: o museu, a galeria, o edital, as grandes exposições, os curadores, que, ao determinar discursos e pautas sobre arte, criam um filtro decisivo para o trabalho dos artistas, elegendo alguns e excluindo outros. Foi o que aconteceu com os impressionistas, ridicularizados pela imprensa e pelo sistema oficial de arte de sua época, mas que cresceram em meio a esse sistema e modificaram radicalmente a forma de ver e pensar as artes visuais.”
Ela cita, também, a definição do filósofo e crítico de arte Arthur Coleman Danto (1924—2013), que investigou as respostas para a pergunta “o que é arte” desde Platão até o século XXI, sintetizando-as em duas características fundamentais, conforme explica a professora: “A obra de arte (seja uma pintura, uma estátua em mármore, uma pilha de tijolos, um filme ou qualquer outra coisa) é algo que encarna um significado e é fruto de uma concepção mental de seu autor. Entendo, portanto, que uma obra de arte já não se distingue pelo material de que é feita, pelas intenções de seu autor de fazer ou não uma obra de arte, se é feita com maestria ou não, se é feita pelas mãos do artista ou não, e, inclusive, se o sistema de arte vigente (incluindo o seu público) afirma que ela seja arte ou não. A obra de arte é fruto de uma visão de seu autor e traz em sua materialidade, seja ela qual for, um significado encarnado — palavra usada para frisar que os significados da obra só existem porque ela própria existe no mundo: ela os carrega.”
Quando questionada se a pintura digital criada por Allen para o concurso no Colorado e as ilustrações incluídas no início desta reportagem podem ser consideradas arte “de verdade”, Mostoni é taxativa: “Sim. Por que não seriam? Será que elas só passariam a ser consideradas arte ‘de verdade’ quando fossem expostas na Bienal de Veneza?! Obras como essas podem ser discutidas em sua relevância, em sua qualidade, de acordo com as preferências de quem olha... Mas sempre através dos termos e conceitospelos quais discutimos obras de arte. Creio que, segundo as ideias de Danto, as imagens geradas por I. A. são, sim, arte ‘de verdade’. E creio, também, que a concepção conceitual de uma obra de arte gerada por I. A. ainda está nas mãos do ser humano — mesmo que a imagem resultante não seja diretamente concebida pelo artista —, o que me faz pensar na I. A. como um meio de execução de uma ideia que, sobretudo, ainda é humana.”
Do outro lado do espectro, por assim dizer, o professor mestre Denicezar Angelo Baldo, coordenador do curso de graduação em Engenharia da Computação da Uniso, concorda com Mostoni: “Eu considero que tudo isso é arte, sim, mas ressalto que se trata de arte computacional. É um tipo diferente de arte, por ter sido criada não diretamente por meio das mãos humanas, mas por meio de uma I. A. — que, por sua vez, tem toda uma equipe por trás de seu próprio desenvolvimento. Mas eu não desqualificaria o valor artístico dessas peças somente por essa particularidade.”
Baldo explica que o termo I. A. é utilizado para definir “todo tipo de sistema que tem como princípio interpretar um conjunto de entradas (inputs) e gerar um conjunto de saídas (outputs) de forma autônoma e otimizada, sem qualquer intervenção humana, exceto, é claro, a intervenção necessária para a criação do próprio código de programação original. Além disso, a I. A. tem a característica de aprender, também de forma autônoma, a cada nova iteração (ou seja, sempre que uma atividade se repete, pela identificação de padrões e variações).” No caso das obras de arte geradas por I. A., os inputs podem ser considerados os comandos de texto que os usuários fornecem à ferramenta e, os outputs, as propostas de imagens devolvidas pelo sistema, que, considerando-se a Midjourney, são quatro a cada rodada, as quais podem ser refinadas várias vezes até que o usuário esteja satisfeito com o resultado.
Para Baldo, assim como é natural que haja resistência por parte da comunidade quando surgem novas tecnologias — isso sempre aconteceu, na verdade, não sendo uma exclusividade da arte gerada por I. A. —, também é natural que regras (como as dos concursos de arte, por exemplo), assim como as leis, levem algum tempo para serem criadas ou adaptadas. Ainda no que diz respeito especificamente ao campo das artes visuais, tome-se como exemplo a questão dos direitos autorais: no Brasil, a Lei nº 9.610, de 19 de fevereiro de 1998, define em seu artigo 11º que autor é “a pessoa física criadora de obra literária, artística ou científica.”
“Assim, de maneira simplista, e se quisermos tratar o tema de forma absolutamente legalista, bastaria afirmar que, de acordo com a legislação brasileira, apenas um ser humano pode ser titular de direito autoral, e que uma I. A. não produz nada que seja passível de direitos autorais”, explica a professora mestra Andréa Vernaglia Faria, do curso de graduação em Direito da Uniso. Contudo, ela também faz ressalvas: “O problema é que essa resposta não é mais suficiente para o momento atual, porque, em sua simplicidade, ela enseja uma série de novos questionamentos: a obra desenvolvida é de domínio público? E os direitos de quem desenvolveu o software? E se foi outra pessoa, ou mesmo outro sistema, que incluiu os dados necessários para que dado resultado fosse atingido pela I. A. (como uma ilustração, por exemplo)?”
Ela explica que, se o foco recair exclusivamente sobre o desenvolvimento do software, é certo que os direitos autorais já garantem aos desenvolvedores a proteção aos direitos patrimoniais referentes à exploração econômica do sistema. “Mas mesmo essa premissa ainda não se mostra suficiente”, ela acrescenta, “visto que, atualmente, os agentes envolvidos exclusivamente na ‘alimentação’ de informações a um software (como os usuários que inserem comandos a um gerador de imagens) não estariam, em tese, protegidos por qualquer legislação. Entendo, assim, que a realidade contemporânea tem sido cuidada por uma legislação que é anacrônica, ou seja, que está defasada em relação às necessidades atuais, e, para que seja possível uma adequação efetiva, será necessário mergulhar profundamente em questionamentos voltados não só à tecnologia, mas também à ética.”
Trata-se de uma lógica que se aplica não somente às artes visuais, visto que já existem sistemas inteligentes produzindo outros tipos de produtos artísticos (até mesmo sinfonias), e tampouco somente às artes. Esta reportagem que você está lendo foi redigida por um ser humano de carne e osso (ainda), mas não é de hoje que existem, também, inúmeros exemplos de textos jornalísticos produzidos por I. A. — alguns deles são a cobertura dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, em 2016, por meio de um bot de texto chamado Heliograf, utilizado pelo jornal estadunidense The Washington Post; a cobertura financeira da agência Bloomberg News, que faz uso de um software chamado Cyborg para fins semelhantes; e até a cobertura das eleições na Região Metropolitana de Sorocaba, pelo portal de notícias G1. Mais recentemente, modelos de linguagem artificial como o ChatGPT ganharam ampla cobertura midiática por serem capazes de responder perguntas em linguagem análoga àquela que um ser humano utilizaria e executar tarefas complexas baseadas em texto — e não deve demorar até que tais ferramentas estejam integradas a motores de busca amplamente utilizados, como o próprio Google. Faria menciona também que já se discute, no campo do Direito, a questão da responsabilização por eventuais erros médicos em procedimentos cirúrgicos conduzidos por I.A. Ou seja: a lista de aplicações — e implicações — se estende indefinidamente e muda bastante rápido (não é de se espantar, portanto, que tenha sido necessário atualizar esta reportagem enquanto ela ainda estava no prelo, aguardando a data de publicação).
“O que eu imagino que deverá acontecer”, conclui Baldo, “é que nós vamos nos acostumar a viver com a I. A., e que ela deverá cada vez mais nos auxiliar a desempenhar determinadas etapas de nossas atividades, seja porque são complexas demais, repetitivas demais etc. A I. A. vai passar a fazer parte do nosso dia a dia aos poucos, como já está acontecendo e como de fato já aconteceu com outras tecnologias no passado: um smartphone de hoje em dia, por exemplo, é muito mais potente do que o módulo que pousou na lua em 1969. Mas isso não aconteceu de um dia para o outro, é claro. E o que é mais interessante é que, mesmo havendo resistência a novas tecnologias no início, dificilmente as pessoas pensam em abrir mão dessas tecnologias depois de serem expostas a elas.”
Siga o link para acessar a reportagem “An A.I.-Generated Picture Won an Art Prize. Artists Aren’t Happy” (em inglês), por Kevin Roose, publicada no The New York Times em setembro de 2022.
Texto: Guilherme Profeta
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