Despedida
Mario Vargas Llosa, um escritor de ofício
Sua obra foi orientada por todos os aspectos que envolvem a América Latina

No primeiro parágrafo do seu principal romance, “Conversa no Catedral”, Mario Vargas Llosa faz o narrador se perguntar: “Em que momento o Peru tinha se dado mal?”
De certa forma, e estendida a toda a América Latina, esta é a questão que orienta uma obra inteira, intensa e grandiosa do peruano aclamado como um escritor de ofício, que morreu neste domingo (13), aos 89 anos.
Para além do carma individual de cada um de nós, por que motivo um continente inteiro havia falhado de forma tão fragorosa em seu caminho para a civilização? Llosa encontrará respostas diferentes em tempos distintos de sua vida e nenhuma delas definitiva.
Esse peruano de Arequipa (1936-2025), que só conheceu o pai com 10 anos de idade (o casal havia se separado depois de seis meses junto), escreve com vocação autobiográfica. Ingressa no Colégio Militar aos 14 anos, por pressão paterna e, da experiência, tira o romance La Ciudad y los Perros, 1963 (Batismo de Fogo na primeira edição brasileira, A Cidade e os Cachorros, na mais recente). Em A Casa Verde, 1966, narra a vida de personagens em um bordel cujo nome dá título à obra.
Romance completo
Conversa no Catedral, 1969, que ele mesmo considerava um “romance completo”, é, de fato, daqueles raros livros que justificam uma vida. O narrador é Zavalita, de 30 anos, filho de ministro de Estado durante a ditadura Odria e agora transformado em jornalista pobre, com dificuldades para fechar o mês e frustrado com seu ofício.
Conversa no Catedral é um dos maiores, mais ambiciosos e complexos romances da literatura hispano-americana. Construído como uma igreja barroca, a golpes de experimentalismo narrativo (mudanças constantes do foco narrativo), memorialismo e ficção política, traz mais que uma história pessoal, a do seu ambivalente narrador. O Peru, com todas as suas contradições grandiosas, está contido ali, naquelas páginas.
Em sua obra ficcional, Llosa alterna o grande ao pequeno. Vai da imponência da Catedral a narrativas satíricas como Pantaleão e as Visitadoras (1973) e Tia Júlia e o Escrevinhador (1977). Alguns desses livros foram parar no cinema. Seu conterrâneo Francisco Lombardi adaptou A Cidade e os Cachorros e Pantaleão e as Visitadoras. Ambos muito bons, mas o primeiro superior ao segundo.
As convicções políticas em suas obras
Os temas sociais não deixaram de interessá-lo, em que pese a trajetória errática de suas convicções políticas. A leitura de Os Sertões, de Euclides da Cunha, inspirou Guerra no Fim do Mundo, 1981, sobre Antônio Conselheiro e seus desvalidos seguidores, e a trágica Guerra de Canudos, no interior da Bahia.
Mais tarde, em O Paraíso na Outra Esquina (2003), escreveu sobre a busca da liberdade por meio de dois personagens, a escritora e feminista Flora Tristán e seu neto, o pintor francês Paul Gauguin. Flora (1803-1844), arequipenha como ele, foi importante difusora das ideias socialistas e dos direitos das mulheres e trabalhadores.
Suas convicções políticas o levam a tentar eleger-se presidente do Peru em 1990 por uma coalizão de centro-direita. No segundo turno perde para Alberto Fujimori, um choque inesperado pois havia vencido na primeira votação e era dado como eleito. Em 1993, decide deixar o país e obtém cidadania espanhola.
Os textos não ficcionais de Vargas Llosa também são dignos de nota, pois raros são os escritores tão bem dotados na ficção como na expressão ensaística. A começar pelo denso García Márquez: História de um Deicídio (1971), sobre o monumento literário Cem Anos de Solidão, do seu colega colombiano.
Aliás, a amizade e depois inimizade entre Mario Vargas Llosa e Gabriel García Márquez tornou-se um must do colunismo de fofocas literárias hispano-americano. Companheiros de mocidade, parceiros no chamado “boom da literatura latino-americana”, ambos Prêmio Nobel.
Um escritor de ofício
Um ensaio interessantíssimo de Llosa é A Tentação do Impossível, sobre a figura titânica do francês Victor Hugo. E há também o curioso A Civilização do Espetáculo (2012), em que Llosa é tão incisivo, lúcido e veemente sobre os males produzidos pelo capitalismo sobre a cultura e as artes que pensaríamos tratar-se de obra saída da pena de um escritor de esquerda, disposto a derrubar um sistema econômico que detesta. Contradição: dessa matéria são feitos os homens, mesmo os gênios. (Estadão Conteúdo)