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Nelson Fonseca Neto

Roqueiro

10 de Outubro de 2024 às 22:39
Cruzeiro do Sul [email protected]
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Tive um sonho bom na semana passada: eu sabia tocar guitarra. Não tocar de qualquer jeito; eu era craque na coisa. Acordei feliz. Cheguei a pensar: será que dá tempo de aprender? Logo eu caí na real e parei de graça.

De vez em quando eu me pego pensando umas bobagens. Gosto de imaginar como a minha vida seria caso eu jogasse muito bem futebol, desenhasse habilmente, soubesse tocar guitarra, fosse um bom cozinheiro. Mas eu tenho que dizer aqui: na maioria das vezes eu penso em como seria a minha vida caso eu fosse um ótimo guitarrista.

Para ser guitarrista dos bons, eu deveria manjar da coisa já na adolescência. Eu teria uma banda. Eu participaria de festivais na escola. Eu passaria o tempo livre ouvindo música no meu quarto. Minha adolescência de roqueiro seria nos anos 90. Eu viveria mexendo nas prateleiras das lojas de cd. E eu tocaria violão nos acampamentos. Opa, aí complica.

Complica duplamente: pelo violão e pelo acampamento. Há quem diga que não é bom combinar leite com manga. E eu digo: não é bom combinar violão com acampamento. Apertem os cintos para mais uma jornada ao mundo do besteirol.

Acampamento é meio bola cantada: você sabe que é presepada. Sempre alguém se machuca, sempre se

passa algum perrengue, sempre rola uma baixaria. Não digo essas coisas sem ter passado pela experiência de ter ido a acampamentos. Frequentei alguns na infância e na adolescência.

Em termos de aventura, os meus acampamentos foram bem mixurucas. Nada de meter a turma no meio do mato em condições degradantes. Comigo as coisas rolavam em chácaras na remotíssima Araçoiaba da Serra. Água encanada, energia elétrica, hospital próximo.

Digo essas coisas porque não quero que vocês imaginem um cenário incompatível com o que de fato acontecia. Isso não elimina o elemento “presepada” da jogada. Não corríamos grandes riscos, mas, convenhamos, juntar muita gente (não importa a faixa etária) numa chácara nunca dá certo. Ainda mais se for pra passar uma ou mais noites ali. O pernoite aciona algum mecanismo psíquico do tipo: minha vida mudou, será pra sempre aqui, tenho que me enturmar com esse povo, ser alegre com esse povo. Aí dá no que dá: gente berrando no truco, jogando o jogo da verdade, fazendo a brincadeira do copo, ouvindo música ruim, cantando música ruim, formando rodinhas de violão.

Sabe o que é o mais triste disso tudo? A maior parte da turma da rodinha de violão era gente fina pra caramba. Em 99% das oportunidades eu me identificava com aquela moçada. Era um pessoal mais descolado, que gostava de ler, que usava umas roupas mais estilosas, que não ficava enchendo o saco dos outros. A turma dos malas estava na outra parte do acampamento, cuspindo no ouvido do inocente que tinha acabado de pegar no sono.

Vão vendo o meu drama. Meu coração estava com a turma da roda do violão, mas as musiquinhas, o olhar meio meloso, as lagriminhas em algumas músicas, as cabecinhas balançando; tudo aquilo era demais pra mim. Eu olhava prum lado: a turma do violão. Olhava pro outro: a turma que amassava latinha de refrigerante na testa. Rolava uma angústia pesada. Eu resolvia a parada ficando na minha e torcendo para aquilo terminar logo. Eu imaginava umas histórias malucas.

Tudo isso pra dizer que o sonho com a guitarra foi sensacional, mas a gente não perde a chance de dar uma espinafrada aqui e outra ali. Espírito de porco é fogo na jaca. É que nem talento: ou você tem ou você não tem. Chega de enrolar. Tchau.