João Alvarenga
Velha roupa colorida

Os antigos costumavam dizer que somos produtos das nossas memórias. Logo, quando uma pessoa não se lembra de simples detalhes do passado, simplesmente, passou pela vida e, pasmem, não viveu. Ou seja, foi um mero espectador da realidade. Embora estivesse presente, parecia ausente, pois sua figura não era notada. Traduzindo, ao invés de ser o personagem principal da própria história, muitas vezes, não passou de mero coadjuvante. Em outras palavras, andou pelo mundo, a esmo, sem tomar partido de nada, nem mesmo teve uma ideia definida sobre o que é, de fato, viver.
Tal modelo pode ser encontrado no livro “As Cidades e as Serras”, de Eça de Queiroz (1865-1890), do Realismo lusitano. Na obra, de 1091, Zé Fernandes, narrador, chama o Jacinto, de quem é amigo, de o “Príncipe da Grã-Ventura”. Temos a nítida impressão de que tal expressão não passa de mera ironia. Por quê? Simples: a vida do protagonista é fútil, não há grandes acontecimentos. Os fãs que me perdoem; mas, praticamente não acontece nada de excepcional na narrativa, pois até mesmo suas memórias são vazias. Por isso, a narrativa se arrasta, algo que é visto, pelos adolescentes de hoje, como algo maçante.
Por outro lado, lembrar, dizem os especialistas, é tentar reviver aquilo que já foi. Ou, então, manter vivo um momento gratificante. É exatamente isso o que acontece comigo, quando, variadas vezes, em sonho, sou transportado para o ano de 1975, exatamente quando estava com 15 anos de idade, momento em que houve uma mudança de paradigma na minha vida. Naquele ano, era aluno do antigo colegial, na Escola Estadual “Major Fonseca”. Como era tímido e tinha poucos amigos, meus únicos (e reais) companheiros eram os livros, especialmente de Machado de Assis.
O leitor que chegou até aqui, pode se perguntar: “Por que 1975 foi um ano impactante na minha vida?” Justifico: foi graças à sensibilidade de uma professora de português, a senhora Jarinda, que descobri a minha “veia poética”, como ela havia dito. Ou seja, a poesia não só chegou para ficar, “mas fez folia em minha vida”. Tanto que, quando me perguntavam: “o que você vai ser quando crescer”? Não hesitava: poeta, claro! Tal resposta provocava risos em meus colegas. Até mesmo, em casa, era motivo de piada. Pior, ouvia respostas, como: “vai morrer de fome, porque no Brasil ninguém gosta de ler”.
Isso não me aborrecia, porque encontrava refúgio nos versos dos poetas românticos do século 19. Também, um velho rádio, na cozinha de casa, que ficava ligado o dia todo, serviu-me de inspiração. Afinal, foi sintonizando as emissoras, que ouvi belas canções que até hoje fazem parte da minha memória. Inclusive, pude acompanhar o surgimento de uma das figuras mais emblemáticas da cena musical brasileira. Um cara de voz rouca, com letras originais e lindamente poéticas. Estou me referindo ao cantor cearense, Belchior, que se tornaria meu ídolo.
É interessante observar que, de acordo com os críticos musicais, o repertório desse cantor é uma autêntica crônica urbana de alcance social. Inclusive, algumas letras relatam os perrengues que enfrentou, quando decidiu vir do Ceará para São Paulo. Só alguém com o dom de versejar poderia construir versos que saíam do lugar comum, e que colocavam o romantismo previsível, reinante naquele tempo, no chinelo.
No entanto, a canção “Velha Roupa Colorida” que, naquele ano, tocou a exaustão em todas as rádios brasileiras, foi a que, de fato, deu maior visibilidade ao talendo desse artista. Os versos: “No presente, a mente, o corpo é diferente/E o passado é uma roupa que não nos serve mais”, naturalmente, profetizavam que as mudanças existenciais são inevitáveis, mesmo que haja resistência de nossa parte. Por fim, posso estar enganado; mas, mesmo que as transformações venham, as nossas reminiscências não se perdem jamais, pois como Drummond poetizou, certa vez, “de tudo fica um pouco”. Bom domingo!
João Alvarenga é professor de redação.