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Nelson Fonseca Neto

Cinema e afeto

26 de Dezembro de 2024 às 21:36
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Eu era cinéfilo no final dos anos 90. Varava madrugadas vendo filmes antigos.

Comprei vários livros de história do cinema e de entrevistas com cineastas.
Frequentei o curso do Inácio Araújo.

Com o perdão do pedantismo, passei a reparar na gramática do cinema. Gastava um tempo enorme revendo cenas de filmes como “Cidadão Kane” e “Nos tempos das diligências”.

Naquela época intensa de cinefilia, duas aberturas de filmes foram arrebatadoras para mim. O curioso é que havia um abismo técnico entre elas. Estou falando dos filmes “A marca da maldade” (Orson Welles) e “Os incompreendidos” (François Truffaut).

No filme de Orson Welles, a câmera, sem cortes, vai acompanhando um carro que cruza a fronteira entre o México e os Estados Unidos. Lá pelas tantas, o carro explode porque alguém havia colocado uma bomba ali. É uma das aberturas mais aclamadas da história do cinema. É um prodígio da técnica. É um treco meio barroco, bem de acordo com a grandeza de Orson Welles.

Já a abertura de “Os incompreendidos”, de Truffaut, é inesquecível por sua simplicidade: uma câmera num carro, filmando um dia qualquer em Paris. Fico imaginando o impacto dessa libertação técnica no final dos anos 50 e início dos anos 60. Muita gente viu o filme na época e se deu conta de que dava pra fazer filmes sem firulas, sem estúdios mastodônticos.

Como eu disse no início, eu estava mergulhado nessas imagens e lendo livros a respeito delas. Um dia eu falo melhor sobre esses livros, muitos deles são geniais e os leio até hoje com prazer. Mas vou falar aqui de um que é muito famoso e é uma aula de cinema: “Hitchcock - Truffaut”, um catatau que registra as conversas entre os dois grandes diretores.

A edição que eu tenho é a da Companhia das Letras e é recheada de imagens dos filmes de Hitchcock. Lembro bem da alegria que senti ao ver que o livro tinha chegado na livraria. No carro, indo pra casa, ia dando umas xeretadas. Crianças, não sigam meu exemplo. Conduzam o carro sem distrações.

Enquanto lia o livro, fui me dando conta de uma coisa: eu conhecia muitas das referências que o Truffaut fazia aos filmes do Hitchcock, e isso não vinha dos cursos que eu fazia ou dos livros que eu lia. Também não tinha a ver com incursões recentes ao universo hitchcockiano: naquele momento de cinéfilo caxias, eu não tinha chegado metodicamente às maravilhas do diretor inglês.

De onde vinha minha familiaridade então? Da infância com a minha mãe cinéfila. Parece arrogante falar assim, mas antes dos 10 anos eu virei fã do Hitchcock porque a minha mãe, sempre que aparecia um filme dele na TV, assistia comigo e ia fazendo uns comentários certeiros e engraçados. Eu era íntimo da turma do “Festim diabólico” muito antes de querer ser o intelectual presepeiro. Eu achava o máximo ver as janelinhas que estavam no campo de visão do James Stewart em “Janela indiscreta”. Aquelas imagens faziam parte da minha vida numa boa.

Assim fica fácil desfilar com o livrão de cinema por aí.