Nelson Fonseca Neto
Contentamento descontente
Na minha época de criança, isso lá nos anos 80, tinha um doce chamado “Ioiô Crem” que fazia muito sucesso. Era um copinho com umas bolachas em forma de canudo. No topo do copinho tinha um creme de duas cores: marrom e branco. Aquilo era gordura pura e era doce de arder a garganta. A criançada pirava naquilo. Era ruim, mas era bom. O nome disso é paradoxo.
Eu lembrei do bendito “Ioiô Crem” por causa de um filme que eu vi com a Patrícia na sexta à noite: “Stallone Cobra”, de 1986. Vimos a obra-prima a partir de um golpe de sorte. Estávamos percorrendo os canais da tv a cabo em busca de algo decente. Então nos deparamos com aquela maravilha que só os aos 80 podem oferecer.
(Sinopse bem mixuruca pra vocês: o policial Marion Cobretti [o Stallone, no caso] combate o crime numa Los Angeles bem detonada. Lá pelas tantas, ele precisa lidar com uma milícia de birutas [pleonasmo] que decide tocar o terror na cidade. Aí, já viu, é muito tiro, porrada e explosão. Tudo acaba bem.)
Cara, o filme é ruim, mas é bom. Pergunte se a Patrícia e eu conseguimos deixar de ver até final. (Antes que acionem o conselho tutelar: o João Pedro estava dormindo como um querubim no quarto dele.) As falas são maravilhosas. Uma delas, proferida pelo companheiro do Stallone, ao apresentá-lo para a mocinha da história: “E esse sujeito com o olhar expressivo é o Cobretti”. (Na cena, o Stallone está com a expressividade de uma tilápia. Eu tava comendo um bombom e quase engasguei rindo. A Patrícia não parou de imitar o jeitão do companheiro do Stallone.)
Não é a primeira vez (nem será a última) que acontece: a Patrícia e eu hipnotizados diante de um filme dos anos 80. Sabe, teve uma época em que eu encanava com isso. É que muitos dos filmes daquela época eram ruins de dar dó. Pô, gente, eu tenho noção das coisas. Mas essa noção é soterrada por um Robocop ou por um Ivan Drago. Então, mas agora eu não encano mais. Envelhecer é bom.
Eu passo boa parte do meu tempo lendo livros cabeçudos, transito com certa desenvoltura pelo mundo de caras como Tolstói, Dickens, Machado de Assis, Flaubert e quetais; eu me viro bem quando o assunto é o cinema de Truffaut, John Ford, Einsenstein; eu tenho certeza de que a galera do Spotfy bate palmas para as músicas que eu ouço; sei diferenciar John Coltrane de Charlie Parker; enfim, tudo isso pra chafurdar no lodo do Stallone? (Aqui, o cronista aguarda o aplauso dos leitores: “Nossa, que culto!”)
Pois é, fazer o quê? Viu, já reparou que tem um monte de histórias mostrando o médico e o monstro, o diabinho e o anjinho, a Ruth e a Raquel, em suma, o ser humano dividido, problemático e tal? Então é isso. O meu lado bonzinho vai pro Montaigne; o meu lado ruinzinho vai ver “O grande dragão branco”. (Já que entramos na seara da luta: se você já viu qualquer pedaço de filme do Bruce Lee e não achou aquilo sensacional, meu irmão, você tem algum problema.)
Bom, mas voltemos àquilo (vai crase, não estranhe) que interessa: no “Stallone Cobra” tem uma cena em que a mocinha está internada no “Hospital Central de Los Angeles”. O cara biruta da milícia que já havia tentado matá-la num estacionamento descobre o quarto no qual ela repousa. Só que o vilão do filme tem uma tremenda cara de vilão, e então precisa disfarçar. Ele mata um cara do almoxarifado do hospital só pra pegar os óculos do coitado. Com os óculos, e empunhando uma faca muito assustadora, ele encontra a mocinha. Ela descobre o que está pra acontecer e arma um banzé. Ninguém ali pra socorrer a moça. Só quando ela aciona o alarme de incêndio é que as pessoas vão aparecem. Mas a coisa é tão ruim que elas vão aparecendo aos borbotões, e o corredor fica parecendo o Esplanada perto do Natal. É ruim, péssimo, mas é maravilhoso.
Eu não vim dos anos 80; eu sou um refém dos anos 80.