Nelson Fonseca Neto
Dalton Trevisan
O Randall, meu grande amigo, lembrou numa postagem do Instagram de uma coisa que aconteceu em 1999. Ele escreveu um texto muito bom sobre como, numa pizzaria, eu fui enfático ao recomendar que ele lesse Dalton Trevisan. O Randall foi gentil na maneira como me retratou na postagem. Vou explicar aqui o porquê de eu achar que o Randall foi gentil.
Em 1998 eu resolvi escrever uns contos. Até então, eu nunca tinha desejado ser escritor. Eu gostava de ler, queria ser professor, trabalhar em editora, essas coisas. No começo daquele ano tudo ficou bagunçado porque um professor da faculdade mostrou pra gente uns contos do Dalton Trevisan. Eu vou usar uma imagem gasta: foi como se eu tivesse sido atingido por um raio.
A partir daquilo eu achei que podia escrever contos. Evidente que a primeira leva foi influenciada enormemente por Dalton Trevisan. Eram histórias curtas, violentas, com uma sintaxe pitoresca. Eu estava alucinado com o que o Dalton Trevisan foi fazendo ao longo da carreira.
Ele sempre foi contista. Já nos primeiros textos ele era conciso. Um dos seus primeiros livros, “Novelas nada exemplares” (1959), reunia textos ótimos, secos. Difícil imaginar alguém enxugando aquilo ainda mais. E não é que Dalton Trevisan, nos livros que se seguiram, foi cortando, cortando, cortando? Difícil explicar aqui como a coisa se deu, mas recomendo que o leitor pegue, só pra sentir o drama, “Novelas nada exemplares” e compare com “O beijo na nuca”, de 2014. São as pontas que unem 55 anos de carreira. Na comparação, o leitor vai perceber como dá pra dizer muito sendo extremamente econômico.
O que eu acabei de falar tem mais a ver com aspectos estilísticos. Os adjetivos e advérbios foram desaparecendo, as frases foram encurtando. Mas a concisão de Dalton Trevisan também se dava na maneira como ele encadeava as cenas. Ele, e nisso era imbatível, sabia escolher os instantes decisivos. Naquelas sequências magras a gente entendia muito bem o abismo do que estava acontecendo. Muita gente acha que a dificuldade da escrita está na quantidade de palavras que o autor coloca no papel: quanto mais palavras, mais duro o trabalho. Não é tão simples assim. Dalton Trevisan e a poesia mostram o contrário.
Dalton Trevisan morreu nesta semana, aos 99 anos. Muita gente escreveu textos ótimos sobre a sua obra. Sua morte teve justificada repercussão. Ele foi um dos maiores contistas brasileiros. “Um dos maiores” é bondade; ele foi o maior contista brasileiro. Vários estudos alentados foram publicados a seu respeito, mas tem mais uma coisinha sobre ele que eu, humildemente, quero falar aqui.
E essa coisinha tem sido cada vez mais importante pra mim: o modo como o escritor se relaciona com a cidade. Existem casos maravilhosos: Lima Barreto e o Rio de Janeiro; Nelson Rodrigues e o Rio de Janeiro; Dickens e Londres; Balzac e Paris; James Ellroy e Los Angeles; e Dalton Trevisan e Curitiba.
Dalton Trevisan publicou dezenas de livros. Não tenho um número exato, mas arrisco dizer que mais de 80% de sua obra é ambientada em Curitiba. Se levarmos em conta que ele começou a publicar no fim dos anos 50 e parou em 2014, dá pra imaginar quantas Curitibas aparecem ali.
E aparecem muitas porque ele perambulava pela cidade. Dizem que seus contos iam ganhando forma a partir de conversas ouvidas no ônibus e nas ruas e da leitura das páginas policiais. É por isso que em sua obra cabe a gafieira da década de 60 e as cracolândias de 2010. E eu posso garantir pra vocês: se limparmos os ouvidos e os olhos, a cidade traz histórias de cair o queixo.
Em 1999, quando encontrei o Randall e falei pra ele ler Dalton Trevisan, eu estava no auge do amor por aqueles contos. E o Randall foi gentil no retrato, porque eu não estava enfático; eu estava delirante. A literatura tem dessas coisas.