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Éric Diego Barioni

Canabinóides sintéticos e o estigma de zumbis

Esses produtos enganam ou tentam enganar inclusive o usuário ou usuária da droga

09 de Janeiro de 2024 às 23:01
Cruzeiro do Sul [email protected]
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Substâncias sintéticas produzidas em laboratórios clandestinos e utilizadas ilegalmente em muitos países estão cada vez mais próximas da realidade de muitos municípios brasileiros. Em 2023, publicaram-se notícias envolvendo mais uma dessas substâncias. O uso de bromazolan, que até então não havia sido apreendido e identificado nas ruas do Brasil, aparentemente foi o responsável pela morte de um indivíduo no Estado do Espírito Santo. A droga foi identificada graças ao trabalho conjunto da polícia científica e pesquisadores, e a substância sintética agora está incluída na lista de substâncias proibidas do Brasil.

Embora a informação acima seja atual, nesse texto vamos explorar a “supermaconha” ou “droga zumbi”, uma substância igualmente atual e não tão bem conhecida pela comunidade científica e da saúde, aliás, essa droga vem se espalhando pelas ruas e provocando impactos toxicológicos de grandes proporções. “Supermaconha” ou “droga zumbi” são canabinóides sintéticos produzidos de maneira clandestina e comercializados ilegalmente como K2, K9 e Spice, entre outros.

Tal como noticiado pela mídia, os canabinóides sintéticos geram efeitos mais intensos e, certamente, mais tóxicos, se comparados aos efeitos induzidos pela maconha, isso porque esses canabinóides sintéticos, atuando junto aos receptores canabinóides no sistema nervoso central, por exemplo, são aparentemente mais eficientes ao imitar o papel do delta-9-tetrahidrocanabinol (THC), que é a molécula psicoativa da maconha.

Entre os efeitos tóxicos causados por canabinóides sintéticos estão: psicose, paranóia, alucinação, alteração de humor com irritabilidade, agressividade, desorientação, ansiedade, ataques de pânico, tremores, espasmos musculares e convulsão, transpiração intensa, queimação nos olhos, perda de percepção de tempo, sedação, dor no peito, taquicardia, bradicardia, hipertensão, hiperventilação, dormência e formigamento, náuseas, vômitos, xerostomia, entre outros.

É válido ressaltar que nem todos os indivíduos intoxicados apresentam esses sintomas. Os efeitos tóxicos descritos acima foram organizados a partir de alguns relatos de casos de intoxicação causados por canabinóides sintéticos. Em geral, muitos desses sintomas aparentemente desaparecerão duas horas após o uso da droga, mas pouco se sabe ainda sobre a existência de efeitos tóxicos mais persistentes. Nossa sociedade vem estigmatizando a droga e os usuários de canabinóides sintéticos como zumbis, isso é temeroso, uma vez que essas pessoas estão doentes, são dependentes de uma droga, e necessitam de humanização e cuidados.

Farmacologicamente, os canabinóides sintéticos são conhecidos de longa data, foram descritos na década de 60 do século passado, porém os créditos pela descoberta foram atribuídos em 1994 ao pesquisador John W. Huffman. Essas substâncias sintéticas -- algumas são identificadas pelas iniciais do nome de John W. Huffman, como JWH - 018, JWH - 073, JWH - 250, JWH - 200 -- foram inicialmente sintetizadas para uso em pesquisas e terapias sobre e utilizando o sistema endocanabinóide, respectivamente.

De algum modo essas substâncias deixaram os laboratórios de pesquisa e foram parar no mercado ilegal, sendo produzidas e alteradas molecularmente em laboratórios clandestinos. Os primeiros relatos de venda e consumo ilegal ocorreram na Alemanha e Estados Unidos da América e, ainda que alguns estudos indiquem os anos de 2004 e 2008, não é possível afirmar com precisão a data em que essas substâncias passaram a ser comercializadas ilegalmente.

No Brasil, essas drogas integram a lista de Novas Substâncias Psicoativas (NSP), grupo que contém várias substâncias sintéticas ilícitas, como as catinonas, entre outras. Quando essas substâncias surgiram no mercado ilegal e passaram a ser utilizadas e comercializadas, uma vez que não eram conhecidas como de uso abusivo e ilegal e não integravam as listas de substâncias proibidas, escapavam facilmente de apreensões e/ou enquadramentos de tráfico e/ou identificação laboratorial.

Hoje, muitas dessas substâncias sintéticas e suas prováveis alterações moleculares já estão previstas e caracterizadas nas listas de substâncias proibidas, porém os laboratórios clandestinos continuam investindo esforços para alterar molecularmente essas substâncias, escapar da legislação e, como consequência, gerar produtos potencialmente mais nocivos à saúde humana.

K2, K9 e Spice são comercializados pela internet em embalagens identificadas como sais de banho, incenso e/ou indicado para aromaterapia, entre outros. Essas embalagens ainda esclarecem que o produto é impróprio para o consumo humano, mas tudo isso faz parte de um mecanismo que tenta, de várias formas, escapar do controle das autoridades.

Esses produtos enganam ou tentam enganar inclusive o usuário ou usuária da droga, uma vez que os canabinóides sintéticos e outras substâncias tóxicas presentes são pulverizados em material vegetal inerte ou não, imitando o que seria o aspecto das folhas e outros artefatos presentes na maconha.

A solução para isso não está presente numa única ação. A solução para isso é um caminho complexo a ser trilhado. A informação segura, como parte integrante das políticas de educação em saúde e redução de danos, faz parte desse processo complexo e multiprofissional. Enquanto educadores nos cabe informar, orientar e promover discussões sobre o tema, porém, quando paro e penso, me pergunto: o que nós estamos fazendo?

Éric Diego Barioni ([email protected]) é professor na Uniso, conselheiro e presidente da Comissão de Toxicologia no Conselho Regional de Biomedicina da 1ª Região (CRBM-1)