‘The last of us’, ou ‘Tempos pós-modernos’?
Tadeu Rodrigues Iuama e Thífani Postali
Já se vão 52 anos desde que o cineasta George Romero (1940 - 2017) nos apresentou uma das mais poderosas metáforas dos nossos tempos: o zumbi. Da sua origem mítica caribenha, passou por diversas outras roupagens: o cemitério amaldiçoado em que os mortos voltam à vida, a feitiçaria de misteriosos necromantes, o desenvolvimento como arma biológica, entre outros.
Seja nos filmes de Romero, seja nos quadrinhos/séries de “The Walking Dead”, o interesse midiático pelo tema vai e volta. Um desses fenômenos do zumbi na mídia é a franquia “The Last of Us”, composta por dois jogos e outras narrativas dispersas por diversas plataformas midiáticas, tais como quadrinhos, documentários e podcasts.
Dessa vez, o responsável por criar a pandemia “zumbi” é o fungo Cordyceps. Existente no nosso mundo, o fungo exerce algum controle sobre os insetos que infecta, fazendo com que estes se movam para locais mais propícios à disseminação dos esporos do fungo. A diferença em “The Last of Us” é que esse fungo passa também a infectar humanos, que se tornam criaturas muito parecidas com zumbis.
Mas, afinal, a que a metáfora dos zumbis se refere? Em primeiro lugar, é uma provocação com a noção de monstruosidade. Por um lado, os zumbis, frequentemente destituídos de intelecto, são fisicamente monstruosos, e realizam um dos atos mais repudiados por nós: o canibalismo -- o mesmo que horrorizou Hans Staden quando este conheceu os tupinambás, mesmo que no caso a prática fosse outra, conhecida como antropofagia. A antropofagia, prática de canibalismo ritualístico simbólica e ritualística, fascinou pessoas como Michel de Montaigne e Oswald de Andrade, sendo que o último emprestou o termo antropofagia para tecer uma poderosa proposta de olhar para a cultura brasileira. O canibalismo, por sua vez, é a devoração do outro por fome ou por gula (palavras de Andrade). E isso é monstruoso.
Por outro lado, as maiores atrocidades em narrativas de zumbis são perpetuadas por nós mesmos, humanos. É no momento da crise e do confinamento decorrentes das pandemias zumbi que os humanos sobreviventes perpetuam o autoritarismo, a violência, o egoísmo, e outras monstruosidades. E talvez essa seja a principal potência da metáfora dos zumbis: narrativas que mostram o monstro no outro, mas também o monstro em nós mesmos, e como nos relacionamos uns com os outros.
“The Last of Us”, neste sentido, é sublime. É redução ao extremo classificar os jogos como “jogos de zumbis”. Mais acertado seria indicá-los como “jogos de relações humanas”, ou ainda “jogos de ética”. Enquanto pesquisadores, descobrir todas as nuances desse produto midiático tem nos fascinado -- e gerado alguns artigos científicos, no forno ou em fase de avaliação por pares para publicação.
É corriqueiro que estudantes de administração brinquem que é impossível completar a graduação sem que tenham assistido “Tempos Modernos”, filme de Chaplin. Pensamos que, talvez num futuro próximo, processo similar possa recorrer com a indicação de “The Last of Us” para outros cursos das ciências sociais.
Afinal, um jogo, no lugar de um filme, parece dialogar muito melhor com a era pós-moderna, em que o indivíduo é convidado a desocupar a confortável cadeira da passividade e tomar rédea dos processos em que se envolve. Além dessas questões estruturais, os temas abordados pela franquia podem ser poderosas ferramentas para explicar a liquidez baumaniana, a pós-história flusseriana, as redes castellianas, os rizomas deleuzianos, as desconstruções derridianas e a complexidade moriniana, entre diversos outros conceitos pós-modernos. Bons jogos!
Tadeu Rodrigues Iuama é doutor em Comunicação pela Unip e mestre em Comunicação e Cultura pela Uniso. É professor da Belas Artes. Membro do grupo de pesquisa MiLu. Contato: [email protected]
Thífani Postali é doutoranda em multimeios pela Unicamp e mestra em Comunicação e Cultura pela Uniso. É professora da Uniso no curso de Jogos Digitais. Membro do grupo de pesquisa MiLu. Contato: www.thifanipostali.com