Sustentabilidade
Fungo tem potencial para remediar contaminação ambiental por microplásticos
O problema da contaminação vai muito além das máscaras, a exemplo do que acontece com outros produtos que levam plástico em suas composições
Talvez você ainda não tivesse o hábito de fazer uso de máscaras ou outros equipamentos de proteção facial antes da pandemia de Covid-19, já que a prática não era amplamente difundida em todas as culturas do planeta. Certamente isso mudou em 2020. Contudo, você provavelmente não seria capaz de responder com precisão, caso alguém lhe perguntasse, quantas máscaras cirúrgicas você utilizou — e consequentemente descartou — ao longo dos últimos anos. “Muitas!” seria a resposta da maioria das pessoas. Pois saiba que, de modo a avaliar o impacto ambiental desses descartes, existem pesquisadores buscando um pouco mais de exatidão: um estudo de 2021, por exemplo, estimou que, desde que entraram em vigor as medidas de proteção contra a Covid-19 (inclusive o uso de equipamentos pessoais de proteção), cerca de 3,4 bilhões de máscaras e face shields foram descartados diariamente em todo o mundo, portanto totalizando algo em torno de 1,2 trilhões de unidades somente durante o primeiro ano de pandemia. A Ásia, naturalmente, foi a região que liderou a quantidade de descartes diários, com quase 1,9 bilhões de máscaras por dia; a América do Sul, por sua vez, com pouco mais de 380 milhões de máscaras/dia, ficou em quarto lugar. Mas vale lembrar que, a exemplo de outros tipos de poluição, e independentemente da origem do material descartado, o problema é global e, como tal, deve ser tratado de forma sistêmica.
O problema da contaminação por máscaras cirúrgicas vai muito além das máscaras em si, a exemplo do que acontece com outros produtos que levam plástico em suas composições. Isso porque o plástico, ao longo do tempo, gera microplásticos, ou, em outras palavras, pequenos pedacinhos de plástico de até 5 mm — que podem ter sido produzidos nessas dimensões desde o começo (como esferas usadas como ingredientes de cosméticos esfoliantes, por exemplo), ou resultar da fragmentação de pedaços maiores descartados no ambiente. Esses contaminantes vêm sendo identificados em diversos ecossistemas, especialmente nos oceanos, inclusive encontrando caminhos para dentro das cadeias tróficas. Isso significa que os microplásticos estão sendo consumidos por seres que servem de alimento para outros seres vivos, acumulando-se em seus organismos e muitas vezes comprometendo suas funções, até chegar ao topo da cadeia (inclusive ao homem). Vale a pena lembrar disso na próxima ocasião em que você estiver saboreando um peixe.
Daí decorre a importância não só de reduzir tanto quanto possível o consumo de plástico em geral — não especificamente das máscaras cirúrgicas, já que, no caso da pandemia, a prática foi inevitável —, mas também de desenvolver novas maneiras de degradar os microplásticos que estão em vias de contaminar o meio ambiente, de preferência antes que eles atinjam os oceanos. Foi esse o objetivo da pesquisa de mestrado de Nathália Roberta Cardoso Mendes Castanho, cuja dissertação foi defendida em 2022, sob a orientação das professoras doutoras Denise Grotto e Angela Faustino Jozala, no Programa de Pós-Graduação em Ciências Farmacêuticas da Universidade de Sorocaba (Uniso).
O time propôs um sistema de biorremediação baseado em fungos, para ser aplicado em águas contaminadas por microplásticos — uma vez que os sistemas tradicionais de tratamento de água e esgoto não estão equipados para remover eficientemente esse tipo de contaminante. Na prática, Castanho coletou e identificou fungos cujas enzimas têm potencial para degradar quimicamente os polímeros dos quais os plásticos são feitos, para então aplicá-los a amostras de água contendo fragmentos de máscaras cirúrgicas, já que esse tipo específico de poluição se tornou especialmente preocupante durante e após a pandemia de Covid-19.
O potencial de biorremediação dos fungos
De toda a biodiversidade de fungos existentes no mundo, o Brasil é lar de 14% das espécies conhecidas. Porém, considerando-se a extensão territorial e a diversidade dos biomas presentes em território brasileiro, esse valor é considerado bastante baixo, o que significa que ainda existem muitas espécies não documentadas por aí, em cujos metabolismos podem residir soluções para diversos tipos de contaminantes quando o assunto é biorremediação.
Os fungos fazem parte de um reino separado dos animais e das plantas, compreendendo tanto bolores e leveduras quanto aqueles popularmente conhecidos como cogumelos. Independentemente da aparência, todos os fungos são heterótrofos, o que significa que eles não são capazes de produzir o próprio alimento (como as plantas fazem); em vez disso, eles obtêm sua energia a partir da decomposição do substrato em que estão localizados, geralmente matéria orgânica em decomposição. Para esse processo de decomposição, os fungos se valem de complexos processos enzimáticos. O que as pesquisadoras buscaram identificar foi se essas enzimas podem degradar o plástico de que são feitas as máscaras cirúrgicas.
Para isso, Castanho coletou amostras de 13 gêneros diferentes de fungos macroscópicos, todos disponíveis na área verde ao redor do Núcleo de Estudos Ambientais (Neas) da Uniso, numa zona de transição entre dois biomas brasileiros: a Mata Atlântica e o Cerrado. A coleta aconteceu em agosto de 2020 e o material, depois de devidamente processado, foi acondicionado no Laboratório de Microbiologia Industrial e Processos Fermentativos (Laminfe) da Uniso, dando início a uma micoteca (como são chamadas as coleções de fungos) que deverá ser expandida e continuar disponível para futuros estudos desenvolvidos na universidade.
Depois de avaliar a produção enzimática de cada fungo coletado, as pesquisadoras selecionaram as espécies mais promissoras, para, então, testá-las em água acrescida de fragmentos de máscaras cirúrgicas. Nesses testes, os fungos não tinham nenhuma outra fonte de nutrientes a não ser o próprio plástico de que as máscaras são constituídas. Amostras foram coletadas no primeiro dia de experimento e, depois, a cada semana, até o limite de 28 dias.
As pesquisadoras concluíram que diferentes espécies de fungo produzem diferentes tipos de enzimas e, consequentemente, resultam em diferentes efeitos sobre os fragmentos plásticos. Daqueles estudados, o mais promissor foi um fungo do gênero Chaetomium, que se mostrou capaz de desintegrar as fibras da máscara cirúrgica, e talvez tivesse até mesmo chegado a rompê-las totalmente, caso o experimento tivesse continuado por mais tempo.
Castanho conta que, em estudos desenvolvidos por outros pesquisadores, fragmentos plásticos análogos àqueles que ela utilizou foram testados quanto ao seu potencial de degradação em diversos tipos de ambientes (secos ou em água marinha, expostos à luz ou acondicionados no escuro). Contudo, sem o acréscimo de outros organismos para ajudar no processo, as máscaras não apresentaram altos níveis de deterioração mesmo após 36 meses. “Por outro lado”, ela destaca, “a nossa pesquisa mostra uma deterioração significativa em apenas 28 dias, sugerindo que a presença de micro-organismos aumenta a taxa de degradação das máscaras descartáveis à base de plástico.”
O desafio, naturalmente, é encontrar organismos que apresentem as propriedades certas. Nesse sentido, o Chaetomium sp. é certamente um candidato promissor, mas ainda são necessários estudos mais conclusivos até que seja possível utilizá-lo para remediar grandes quantidades de água contaminada. O importante, por ora — e esse é um aspecto que a pesquisa de Castanho reforça —, é manter micotecas universitárias ativas, de modo a garantir a continuidade de pesquisas como a dela. O caminho ainda é longo e, até lá, faz-se imperativo promover o consumo consciente, reduzindo o descarte de plásticos no ambiente.
Para saber mais: Biorremediação
A pesquisadora explica que processos de biorremediação são aqueles que fazem uso de organismos vivos, ou de substâncias resultantes de seus metabolismos, para degradar certos compostos tóxicos, consumindo-os em sua totalidade ou contribuindo quimicamente para que eles sejam transformados em outras substâncias, menos tóxicas ou inertes. Trata-se de um processo que vem sendo bastante recomendado pelos pesquisadores para o tratamento de diversos tipos de ambientes contaminados: plantas industriais, solos e águas superficiais.
Você pode ler mais sobre biorremediação na reportagem “Bactérias podem ser utilizadas para limpar áreas contaminadas por hidrocarbonetos de petróleo”, publicada na edição de número 5 (jun./2020) da revista Uniso Ciência. Acesse.
Link para acessar o artigo “COVID pollution: impact of COVID-19 pandemic on global plastic waste footprint” (em inglês), publicado em fevereiro de 2021 pelos pesquisadores Nsikak U. Benson, David E. Bassey e Thavamani Palanisami (externos à Uniso), no periódico internacional Heliyon.
Com base na dissertação “Isolamento, identificação e aplicação de fungos como micorremediadores de poluentes emergentes: microplásticos”, do Programa de Pós-Graduação em Ciências Farmacêuticas da Universidade de Sorocaba (Uniso), com orientação da professora doutora Denise Grotto e coorientação da professora doutora Angela Faustino Jozala, aprovada em 23 de agosto de 2022. O trabalho completo contém artigos científicos ainda não publicados. A divulgação pública se dará somente após a publicação dos resultados.
Texto: Guilherme Profeta
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